Bíblia e apócrifos – A história completa do cânon e dos livros

Como a Bíblia foi formada? Qual a versão correta? E os apócrifos? – A história completa

Apesar da importância desse tema, o pouco conteúdo que encontramos na internet sobre a história da formação do cânon bíblico e apócrifos é de baixa qualidade e/ou enviesado. Sendo assim, compilei nessa matéria, graças a uma profunda pesquisa nos melhores materiais acadêmicos, toda informação relacionada ao tema, esclarecendo e sintetizando toda a história ao redor da Bíblia e apócrifos. Vamos começar com um panorama geral sobre a Bíblia, depois veremos a história da Antigo Testamento (AT), em seguida veremos a história do Novo Testamento (NT) e por último teremos a conclusão. Importante já falar que dividi as histórias do AT e NT por questões didáticas somente. Muitos processos aconteceram simultaneamente, mas explicarei melhor no decorrer da matéria, especialmente na conclusão, onde há um resumo também. As dúvidas frequentes e as questões polêmicas são abordadas no decorrer da matéria. Algumas informações históricas presentes nessa matéria conflitam com informações de alguns materiais na internet – ainda mais quando se trata dos palpites dos leigos rsrs. Sabendo disso, peço que deem prioridade ao que é dito nessa matéria, porque, além de ser uma extensa pesquisa acadêmica muito bem embasada historica e cientificamente nas melhores fontes, eu conecto com o Conhecimento inegável da Escola de Lucifer. Acreditem, para o tanto de conteúdo presente nesta matéria, o texto ficou pequeno. LEMBRANDO QUE DEUS AGE ATRAVÉS DO LIVRE-ARBÍTRIO E DAS LIMITAÇÕES HUMANAS. ESTA, MESMO SENDO UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E HUMANA DA BÍBLIA, CONTINUA SENDO A HISTÓRIA QUE DEUS ESCREVEU; A HISTÓRIA DE DEUS.

Panorama geral e história da Bíblia

Cada livro bíblico tem uma história à parte bem complexa. Todos esses livros passaram por processos de escrita, debates de aceitação ou rejeição, canonização, etc. Os livros do Antigo Testamento (AT) eram de domínio exclusivo dos judeus antes de Cristo. Houveram alguns concílios, tanto por parte dos judeus, como por parte dos cristãos, que visavam formalizar o cânon de seus respectivos livros sagrados. Há muitas discussões sobre esses concílios, principalmente sobre o de Nicéia em 325 d.C, onde alegam que o próprio imperador Constantino e seus sábios baniram livros do cânon e adulteraram os textos sagrados a bel-prazer. Quanto de verdade há nessa afirmação? 

Primeiramente, vamos entender os conceitos básicos sobre o cânon e apócrifos.

O Novo Testamento é o mesmo para a maioria dos cristãos, como católicos, protestantes e ortodoxos (raras são as exceções), contendo 27 livros. São eles: Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, I-II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I-II Tessalonicensses, I-II Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, I-II Pedro, I-III João, Judas e Apocalipse.

O Antigo Testamento dos protestantes é a Tanakh dos judeus. O Antigo Testamento dos católicos é baseado na Septuaginta, que estudaremos daqui a pouco. Os livros contidos na Tanakh são denominados protocanônicos.

São os protocanônicos: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, I-II Samuel, I-II Reis, I-II Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico de Salomão, Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel, Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

Os livros que a Bíblia católica tem a mais em relação à Tanakh são denominados deuterocanônicos. Me refiro aqui aos protestantes e católicos porque são a maioria dos cristãos, mas há vários outros cânones como dos cristãos ortodoxos, que possuem muitas vertentes. Temos:

Antigo Testamento protestante: 39 livros – os protocanônicos – Tanakh para os judeus

Antigo Testamento católico: 46 livros, sendo 39 protocanônicos + 7 deuterocanônicos – baseado na Septuaginta

Antigo Testamento ortodoxo: Antigo Testamento católico + outros livros deuterocanônicos – também baseado na Septuaginta

Os livros deuterocanônicos dos católicos são: Tobias, Judite, I e II Macabeus, Baruque, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e acréscimos dos capítulos 13 e 14 em Daniel e versículos em Ester.

Os livros deuterocanônicos dos ortodoxos são: os deuterocanônicos católicos + I e II Esdras + III e IV Macabeus + Oração de Manassés. Lembrando que, dependendo da vertente ortodoxa, mais livros são aceitos. Por exemplo, o tão comentado livro de Enoque e o Salmo 151 são aceitos pelos cristãos etíopes como canônicos.

Mais adiante veremos todos os argumentos dos católicos, protestantes e ortodoxos sobre o debate “qual cânon é o certo?”. Esse debate tradicional diz respeito ao cânon do Antigo Testamento somente. Debates em relação ao Novo Testamento (NT) não são institucionalizados igual esse do AT, já que as instituições cristãs concordam com o cânon do NT (mas algumas discussões existem).

E por que devemos estudar o cânon? Cânon significa ‘vara de medir’ em grego, ou seja, um parâmetro moral para a vida do religioso. Quando Paulo usa a palavra “regra” em suas cartas, ele está usando a palavra “cânon” em grego. Então, estudar os cânones é fundamental para entender as bases sagradas das religiões e seus desenvolvimentos.

Apócrifos: panorama geral

Os livros apócrifos, também chamados de livros pseudo-canônicos, são aqueles livros que estão fora do cânon de determinada religião ou vertente religiosa e não são considerados inspirados por Deus consequentemente. Para os protestantes, os deuterocanônicos presentes na Bíblia católica são apócrifos, por exemplo. Além dos deuterocanônicos, há muitos outros apócrifos do Novo e Antigo Testamento que veremos daqui a pouco. Também veremos argumentos relacionados ao cânon. 

O valor de um livro, a Gnose e a tradição oral

É de fundamental importância entender esse tópico. A Gnose, que é o Conhecimento que advém direito da Simetria, é a Verdade pura e não depende de contexto histórico. Os exemplos mais claros de Gnose na Bíblia são a Criação no Gênesis, as palavras de Cristo nos evangelhos e as revelações no Apocalipse de João – mas a maioria dos livros bíblicos possuem Gnose em algum grau. A Gnose presente em cada livro é um fator central na relevância e no valor que o livro tem. 

A tradição oral por sua vez tem algumas peculiaridades. A tradição oral tem relação direta com o contexto histórico e com as crenças teológicas do povo. A teologia presente na tradição oral é sempre mais binária, limitada ao espaço-tempo, enquanto a Gnose é quântica e atemporal. Podemos dizer que a teologia da tradição é a Gnose canalizada àquele binário. A tradição oral é aquilo que os historiadores buscam nos textos para obter informações mais antigas do que a data em que os textos foram escritos. Por exemplo, um texto que se passa no ano 100, mas foi escrito no ano 200, tem 100 anos de intervalo entre seu contexto e seu registro. Caso o texto tenha a tradição oral do contexto, ele é um texto fiel, caso ele não tenha a tradição oral, ele é um texto de baixo valor – provavelmente inventado.

Muitos dos livros bíblicos passaram por processos intervalados desse tipo, sendo escritos décadas, em alguns casos séculos, depois do contexto registrado. Muitos livros do NT só foram escritos muitas décadas depois de Jesus; outros para registrar os ensinamentos em tempos de perseguições; outros foram escritos pelos discípulos dos apóstolos, não por eles mesmos. Isso também serve para o Antigo Testamento: vários livros foram escritos muitos anos depois dos profetas e alguns livros demoraram décadas para serem concluídos, havendo vários autores. O que eles têm em comum é que todos foram escritos baseados em suas respectivas tradições orais, sendo assim, de alto valor histórico e teológico. Importante pontuar que é claro que há graus de fidelidade: há textos 100% fiéis, textos com algumas invenções baseadas ao redor da realidade e textos completamente inúteis.

Analisando os textos antigos dos pais da igreja, vemos que cristãos preferiam a tradição verbal à escrita. Foi após séculos que os cristãos passaram a priorizar a escrita. Por isso, é fundamental entender esse tópico.

Muitos apócrifos possuem Gnose e tradições orais, sendo assim, livros muito importantes. Já outros são de pouco valor. 

Adendo: os judeus sempre falaram que Deus entregou a Moisés tanto a Torah escrita quanto a Torah oral. Esta última é leis e estatutos, tipo instruções de como a Lei deveria ser interpretada, que deveriam ser transmitidos de boca a boca através dos sábios judaicos, além de outras tradições judaicas. Basicamente, com o passar do tempo, essa tradição oral judaica se tornou o Talmud. Os judeus estavam se dispersando devido a conflitos, por isso houve a necessidade de plasmar esse compilado que é o Talmud, que hoje conta com mais de 6 mil páginas e mais de 10 mil rabinos comentaristas.

Historicidade e cânon do Antigo Testamento

Uma passagem rápida pela história dos livros

A tradição presente no Gênesis é a tradição dos mesopotâmicos adaptada para a perspectiva hebraica. Como o Bob diz no Lucifer – Onde a Verdade é Lei, o Gênesis é uma cópia de textos sagrados mais antigos, como o Enuma Elish. Também vemos influência de outros textos como a Epopeia de Gilgamesh e o Código de Hamurabi na Torah como um todo. Somado a isso temos também muita Gnose nesses textos bíblicos, além de uma perspectiva diferente da dos pagãos, o que os torna livros únicos em todos os sentidos.

Tudo indica que a Torah (Pentateuco) que temos foi escrita baseada na tradição oral de Moisés, mas não escrita diretamente por ele. Nada impede da Torah ser uma adaptação de textos mais antigos escritos por Moisés. É consenso entre os historiadores que a Torah juntamente com os livros históricos (veja a imagem abaixo) levaram alguns séculos para serem escritos, sendo o compilado final que temos da Torah + históricos finalizado somente após o exílio na Babilônia.

Os livros proféticos em sua maioria tiveram partes escritas pelos profetas e foram concluídos algum tempo depois pelos seguidores dos profetas. Vemos isso claramente com Amós, Oséias, Jeremias, Ezequiel, Miqueias, entre outros. Um importante exemplo é Isaías, que através da crítica interna, os historiadores concluíram que o livro é divido em 3 partes, sendo escrito em 3 períodos durante 3 séculos. O primeiro Isaías, do capítulo 1 ao 39, que teve sua grande parte escrita pelo profeta Isaías.

Veja as estimativas dos historiadores das datas que os livros foram escritos:

O cânon judaico

O primeiro passo para compreendermos a história do Antigo Testamento é analisar a história do cânon judaico. Como já dito, o cânon judaico é a Tanakh, e diferentemente dos protestantes, ela não é dividida em 39 livros, mas sim 24 (ou 22 dependendo da vertente judaica). Isso ocorre pois o que são vários livros para os protestantes, para os judeus são um único livro. I e II Samuel, I e II Reis e I e II Crônicas e Esdras e Neemias contam como sendo um só livro cada dupla e também os Doze profetas menores, considerados um só livro.

Os judeus só vieram a ter um cânon formalizado séculos depois de Cristo. Inclusive esse veio a ser um argumento a favor do cânon católico. Apesar de ser uma formalização tardia, o processo de canonização começou muito antes (e esse veio a ser o argumento protestante). Através da pesquisa histórica, podemos ver que esse processo começou após o exílio da Babilônia, no século VI a.C. – período histórico marcado pela atividade dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel. O primeiro livro considerado canônico foi a Torah (pentateuco para os cristãos). Gradualmente os livros dos profetas foram entrando para o cânon informal dos judeus. Em II Macabeus, escrito séc II a.C., podemos ver a divisão entre Lei e os Profetas. Salmos, Provérbios e Eclesiastes foram aceitos gradativamente pela maioria com o passar do tempo. 

Podemos observar que o cânon está diretamente ligado com o que a maioria aceita e com a tradição oral. O cânon não é algo que caiu do céu pronto. Processos muito parecidos ocorreram com os livros do NT.

Os grupos judaicos tinham diferentes visões sobre a teologia e o cânon em geral. Os principais são saduceus, fariseus e essênios. Por exemplo, para os saduceus o cânon era a Torah e rejeitavam a tradição oral, enquanto os fariseus adotavam mais livros e davam muita importância à tradição oral (a mesma importância dos textos sagrados, na prática). Essas questões mostram que o processo de canonização não foi simples, e apesar da maioria, com o passar do tempo, reconhecer uma boa parte dos livros como sagrados (Lei e Profetas), as comunidades discordavam em relação à relevância de cada livro. 

A divisão da Tanakh se dá da seguinte forma: Torah (Pentateuco ou “Cinco livros de Moisés”), Nevi’im (Profetas pioneiros: as narrativas de Josué, Juízes, Samuel e de Reis; e dos Últimos Profetas: os livros de Isaías, Jeremias e Ezequiel e dos Doze profetas menores) e Ketuvim. Ketuvim consiste em 11 livros: livros poéticos (Salmos, Provérbios, Jó), cinco pergaminhos (Cântico dos cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes e Ester) e Daniel, Esdras-Neemias e Crônicas que não possuem um agrupamento formal. Os cinco pergaminhos são os livros mais recentes coletados no cânon judaico, com as partes mais recentes tendo datas que vão até o segundo século a.C. A grande maioria das polêmicas do cânon judaico estão no Ketuvim. Polêmicas essas que refletem no cânon cristão.

Antes de prosseguirmos, vamos entender do que se trata a Septuaginta, um ponto central no processo de formação do cânon.

Septuaginta (Versão dos Setenta)

O rei do Egito Ptolomeu II Filadelfo, foi um dos responsáveis por governar o império macedônico após Alexandre o Grande falecer (séc IV a.C.). Ele governou a região do Egito até Israel. Segundo a Carta de Aristeias, que Flávio Josefo relata, o imperador Ptolomeu pediu ao sumo sacerdote que traduzisse a Torah para o grego koiné com o fim de incluí-la na Biblioteca de Alexandria. O sumo sacerdote, então, convocou 6 sábios de cada tribo, totalizando 72 sábios para executar a missão. Esses sábios levaram 72 dias para finalizar a tradução, que foi revista por outros 72 sábios – isso é o que a carta e Flávio Josefo nos relata. Com o passar do tempo, outros livros foram sendo traduzidos para o grego koiné, sendo essa coleção de traduções denominada Septuaginta. Aquilo que começou entre os séculos IV e III a.C. com a tradução da Torah, só terminou no séc I d.C., com muitos livros traduzidos. Os judeus foram traduzindo os livros que eles consideravam sagrados (lembrando que os grupos judaicos não concordavam entre si). Entre os livros traduzidos estavam os que hoje chamamos de deuterocanônicos (além de outros apócrifos). (Aparentemente, alguns livros, como Sabedoria e II Macabeus, não passaram pelo processo de tradução do hebraico, pois foram compostos diretamente em grego – mas se encontravam na Septuaginta de qualquer forma). Na época, uma boa parte dos judeus aceitava muitos desses livros como sagrados e, consequentemente, canônicos. No entanto, posteriormente, os deuterocanônicos foram rejeitados juntamente com os demais apócrifos. Os documentos que possuem a Septuaginta são de séculos mais tarde. São 3 coleções: Codex Vaticanus (do séc IV d.C.), Codex Sinaiticus (do séc IV d.C.) e Codex Alexandrinus (do séc V d.C.). Vamos ver o conteúdo relacionado à Septuaginta e Antigo Testamento de cada coleção – eles também continham o Novo Testamento, incluindo alguns apócrifos:

Codex Vaticanus: protocanônicos + I Esdras + deuterocanônicos da Bíblia católica com exceção de I e II Macabeus

Codex Sinaiticus: partes dos protocanônicos + I Esdras + Tobias + Judite + I-IV Macabeus + Sabedoria + Siraque

Codex Alexandrinus: protocanônicos + deuterocanônicos da Bíblia católica + I e II Clemente + III e IV Macabeus + I Esdras + Salmo 151 + Livro de Odes + etc

Nenhum codex corresponde exatamente à Bíblia católica – é possível afirmar que o cânon católico é um meio termo dos codexes. Já a tradição ortodoxa está mais para, grosseiramente falando, a soma dos codexes. Agora voltemos ao cânon judaico.

Concílio de Jamnia e o fechamento do cânon judaico 

A formalização do cânon judaico ocorreu entre o final do século I e séc III, não havendo datas muito precisas (muitas questões relacionadas ao cânon do AT e NT são abstratas, por isso é tão difícil achar informações históricas a respeito). No final do primeiro século, por volta de 90 d.C., ocorreu o Concílio de Jamnia, que teria sido proposto com a finalidade de dar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C., e uma resposta ao cristianismo que estava se propagando e os textos de seguidores de Cristo já estavam se popularizando gradualmente como Escrituras Sagradas. Assim, nesse concílio regional, os participantes teriam decidido considerar como textos canônicos do judaísmo apenas aqueles cujos originais tivessem sido compostos em língua hebraica, dentro dos limites da Terra Santa e que, no mínimo, remontassem ao tempo do profeta Esdras, invalidando assim, os textos cristãos. Informações do Concílio de Jamnia são bem abstratas, alguns falam que o concílio visava ratificar aquilo que já era aceito por todos os judeus através dos séculos, tendo discussões mais superficiais como discutir sobre a canonicidade do livro de Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. Já outros afirmam que o concílio debateu o cânon em todos os níveis. 

O que é mais correto de se afirmar, baseado nas probabilidades da pesquisa histórica, é que o Concílio de Jamnia ratificou os livros mais básicos, como Torah e Profetas (Nevi’im), e debateu os livros mais polêmicos. Como vimos, as comunidades judaicas divergiam sobre o cânon, vários achavam que os deuterocanônicos da Septuaginta eram sagrados, outros achavam que só a Lei de Moisés era sagrada. O que a grande maioria tinha em comum era a Torah e os Profetas. É bom enfatizar que o Concílio de Jamnia foi um concílio regional, cujos sábios não eram os mais respeitados. Por isso, o processo de canonização judaico continuou por um tempo e só terminou no séc III. Também houve o enfraquecimento dos saduceus ao longo do tempo, com simultâneo fortalecimento dos fariseus, de tal forma que o cânon judaico também pode ser chamado de cânon farisaico.

Como dito, os requisitos que o concílio propôs para que um livro precisava ter para ser considerado canônico foram: composto em língua hebraica originalmente, dentro dos limites da Terra Santa e que, no mínimo, remontasse ao tempo do profeta Esdras. Mas além desses, podemos ver outros critérios mais informais, não no Concílio de Jamnia especificamente, mas em todo processo final de formalização do cânon judaico: aceitação nas comunidades judaicas, livros que os cristãos aceitavam foram mais facilmente rejeitados e livros apocalípticos foram descartados devido aos cenários também apocalípticos que os judeus passavam na época. E é nesta última categoria que se enquadram os capítulos 13 e 14 de Daniel e o livro de Enoque: livros apocalípticos rejeitados por causa dos contextos da época (perseguições, destruição do templo, etc).

O livro de Enoque

O livro apócrifo de Enoque é provavelmente o mais comentado dos apócrifos. (Este é o Primeiro livro de Enoque, já que há outros 2 livros escritos séculos mais tarde). Muitos judeus aceitavam o livro como sagrado, e no cristianismo primitivo, muitos cristãos também aceitavam, com vários pais da igreja falando que o consideravam inspirado por Deus e canônico. Tanto a Epístola de Judas, um livro canônico do Novo Testamento, quanto a Epístola de Barnabé, um livro que entrou para alguns cânones do NT na igreja primitiva e quase entrou para o cânon normativo posteriormente, mencionam explicitamente o livro de Enoque (Judas 1:14-15 e Barnabé 4). Podemos ver outras citações implícitas no NT. Ele chegou a ter mais influência que vários livros que entraram para o cânon. 

Através da crítica interna, é possível concluir que o livro teve sua primeira parte (intitulada “Livro dos Vigias” que vai do capítulo 1 ao 36), a parte mais relevante, escrita no séc III a.C., mas só teve as demais partes concluídas entre os séculos I a.C e I d.C. O livro conta algumas histórias de Enoque, vários detalhes sobre o dilúvio, os gigantes (nephilins) e anjos caídos, fala muito de escatologia, profecias da vinda de um Messias sobrenatural (o que foge do judaísmo), outras muitas profecias do Apocalipse e do julgamento no final dos tempos, etc. É um livro muito completo, que se enquadra na categoria de livro apocalíptico, igual Daniel (ambos desenvolvidos no período helenístico). É fato que ele influenciou muito a cosmovisão judaica e cristã. Mais para o final da Antiguidade, tanto os judeus quanto os cristãos foram perdendo o interesse no livro; tanto que, vemos que ele não entrou pro cânon normativo de nenhuma das duas religiões. Ainda hoje, os cristãos etíopes, aceitam o livro de Enoque em seu cânon. 

O livro é atribuído a Enoque, porém não foi escrito por ele. É evidente que há uma tradição importante nesse livro; uma tradição milenar, que pode ter alguma coxexão com Enoque. O livro também foi responsável por influenciar a cabala judaica. Além da importante tradição, há muita Gnose também. Enoque é um livro muito importante e relevante, e, entendendo os conteúdos da Escola de Lucifer, você pode entendê-lo perfeitamente!

Embora o livro de Enoque tenha sido aceito como sagrado por muitos judeus e cristãos, outros rejeitaram sua canonicidade. O argumento que os alguns cristãos e judeus dão para rejeitar esse livro é que ele foi escrito no período após a morte do profeta Esdras (período intertestamentário para os cristãos). Esse argumento não é bom, já que outros livros como Daniel, Ester, Esdras, Neemias, Eclesiastes, I e II Crônicas também foram escritos nesse período. Outro argumento que os judeus dão é que ele foi escrito pelos essênios, grupo discordante dos fariseus (lembrando que o cânon judaico é o cânon farisaico).

Antigo Testamento cristão

Agora que entendemos o processo de canonização da bíblia judaica e a Septuaginta, podemos olhar para o cânon cristão. Em todo o cristianismo primitivo, os pais da igreja propuseram cânones, tanto do AT quanto do NT. Vejamos os exemplos de cânones e os eventos que culminaram na formação do nosso Antigo Testamento:

– Lista de Briênio (datada do século I ou II): Gênesis, Êxodo, Levítico, Jesus Nave (livro de Josué), Deuteronômio, Números, Juízes, Rute, 4 de Reis (Samuel + Reis), 2 de Crônicas, 2 de Esdras (provavelmente Esdras e Neemias), Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Jó, 12 de Profetas menores, Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel.

– Marcião de Sinope (85 – 160): rejeitou explicitamente o Antigo Testamento e propôs sua versão do Novo Testamento (exposta na parte do NT).

– Melito de Sárdis (bispo que propôs um cânon em 170): os protocanônicos, porém só contendo 1 livro dos profetas menores, não tendo o livro de Ester e incluindo Sabedoria.

– Orígenes de Alexandria (primeira metade do século III): os protocanônicos excluindo os doze profetas menores, aparentemente por acidente, e incluindo a Epístola de Jeremias (talvez se referindo ao Livro de Baruque como um apêndice de Jeremias). Ele também fala que há outros livros lidos na igreja como Macabeus, não deixando claro sua posição sobre ele. 

– Atanásio de Alexandria: em seus escritos, por volta do ano 367, estão como canônicos os livros protocanônicos não incluindo Ester e incluindo o livro de Baruque. Ele cita Sabedoria de Salomão, Tobias, Judite, Sabedoria de Siraque e Ester como de boa leitura somente.

– Os pais da igreja que propuseram cânones formados pelos protocanônicos, rejeitando os deuterocanônicos: Eusébio de Cesareia (265 – 339), Cirilo de Jerusalém (315 – 386), Basílio o grande (329 – 379) e Gregório de Nazianzeno (329 – 389).

– S. Jerônimo (347 – 419): falou que Tobias, Judite, Sabedoria, Macabeus e Eclesiástico são bons para a edificação do povo, mas não para estabelecer as doutrinas da igreja.

– Em 382, o imperador Teodósio I convocou o Concílio de Roma, sob a autoridade do Papa Dâmaso I, para discutir a eleição do patriarca de Constantinopla. O que o Decretum Gelasianum (492-496, mais de 1 século depois do concílio) do Papa Gelásio I nos relata, é que o concílio foi responsável por estabelecer um cânon bíblico. O concílio estabeleceu o cânon da forma que é a bíblia católica, com os livros protocanônicos mais os 7 deuterocanônicos, e os livros do NT da forma padrão; totalizando 73 livros. Este foi um concílio regional (não ecumênico, como Niceia em 325 d.C.), mas apesar disso foi um concílio bem relevante, afinal se tratava de Roma.

– Em 393 e 397 houveram os concílios de Hipona e Cartago, respectivamente. Ambos também concílios regionais onde o cânon foi debatido. O resultado desses debates canônicos foi o mesmo do Concílio de Roma, confirmando o cânon com os 73 livros. Em 419, outro concílio em Cartago estabeleceu o mesmo cânon.

Esses foram os concílios mais importantes para a história canônica da Bíblia cristã. Por volta de 405, o Papa Inocêncio I enviou uma lista de livros sagrados contendo os 73 livros católicos ao bispo gaulês Exupério de Toulouse. E assim, o cânon do Antigo Testamento estava formado.

OBS: Antes desses, também houveram outros concílios, como de Niceia (325) e de Laodiceia (363). O Concílio de Laodiceia foi um concílio pequeno e irrelevante comparado aos demais, onde os historiadores não concordam se nele foi debatido o cânon ou não (alguns historiadores falam que os registros de debate do cânon bíblico são um acréscimo posterior). Teoricamente, o cânon proposto decreta que o Novo Testamento conteria 26 livros, omitindo o Livro do Apocalipse, e o Antigo Testamento, incluiria os 22 livros da Bíblia Hebraica (protocanônicos), acrescido do Livro de Baruque e da Epístola de Jeremias. Já o subtópico do Concílio de Niceia e Constantino é mais complexo e está posicionado após o tópico do Novo Testamento.

Apesar do consenso sobre os livros a partir dos séculos IV e V, não houve para toda a Igreja Ocidental um concílio ecumênico que determinasse explicitamente o cânon até o Concílio de Florença em 1442 (onde a Igreja Ortodoxa discordou da Católica – explicação no final da matéria). Assim, durante a Idade Média, várias versões da Vulgata Latina (explicação mais pro final da matéria) circulavam e eram aceitas pela Igreja Católica. Era relativamente comum encontrar os livros de III e IV Esdras, Oração de Manassés, a Oração de Salomão, III Macabeus no Antigo Testamento. 

Apócrifos do Antigo Testamento

Livro de Jasher

Também chamado de Livro de Jasar, que significa que o Livro dos Retos ou o Livro dos Justos, é um livro apócrifo mencionado 2 vezes no AT que foi perdido ao longo do tempo. Josué 10:13: “E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto não está escrito no livro de Jasher?”. II Samuel 1:18: “Dizendo ele que ensinassem aos filhos de Judá o uso do arco. Eis que está escrito no livro de Jasher”. Pelas próprias citações podemos concluir que esse era um livro bem influente na Antiguidade.

Livro dos Jubileus

Este apócrifo narra a história da criação do mundo, a história de Adão e Eva e segue com a história dos personagens bíblicos encontrados em Gênesis, incluindo os três patriarcas de Israel, até o nascimento de Moisés. É um antigo trabalho religioso judaico, de 50 capítulos, considerado canônico pela Igreja etíope ortodoxa, bem como pelos Beta Israel (judeus etíopes), onde é conhecido como o Livro de Divisão. O livro possui grande valor histórico e teológico, e é citado pelos pais da igreja. Parece ser um texto muito antigo, provavelmente escrito durante o período do Segundo Templo, mas sem uma datação precisa, e nenhuma versão completa sobreviveu ao tempo, somente havendo fragmentos.

I e II Esdras (ou III e IV Esdras)

Há uma confusão sobre a numeração: a Vulgata, de Jerônimo (explicação no final), inclui 4 livros de Esdras (I, II, III e IV). Escritores protestantes, baseados na Bíblia de Genebra, chamaram os livros I e II da Vulgata de “Esdras” e “Neemias” e chamaram os livros III e IV da Vulgata de “I Esdras” e “II Esdras”. I Esdras é parte da Septuaginta, e há muitas dúvidas de quando ele foi escrito e se ele possui ligação direta com os livros de Esdras e Neemias. O conteúdo deste livro parece enfatizar uma disputa na corte de Jeoiaquim, o último rei de Judá, para a qual detalhes de outros livros são necessários para completar a história. Já II Esdras foi escrito no final do séc I d.C., e fala de 7 visões do escriba Esdras. Algumas visões são diálogos com o arcanjo Uriel, outras são ordens de Deus. Todas as visões se relacionam com um apocalipse judaico, tanto que o livro é conhecido como Apocalipse de Esdras. Ambos os livros foram amplamente citados pelos pais da igreja. I Esdras entrou para vários cânones primitivos e é considerado canônico em igrejas orientais ainda hoje. II Esdras também entrou para uns cânones, sendo parte até hoje do cânon da igreja etíope, mas foi menos relevante que I Esdras de modo geral. 

Livros perdidos citados no Antigo Testamento:

Livro das Guerras do Senhor: Números 21:14-15

Livro dos Atos de Salomão: 1 Reis 11:41

Livro de Natã, o profeta: 1 Crônicas 29:29

Livro de Aías, o Silonita, Livro de Ado, o Vidente, e Livros de Semaias, o profeta: 2 Crônicas 9:29 e 2 Crônicas 12:15

Livros dos Medos e dos Persas: Ester 10:1-2

Historicidade e cânon do Novo Testamento

As vertentes tradicionais do cristianismo aceitam e concordam com o cânon do Novo Testamento. A divisão dos livros se dá da seguinte forma:

Evangelhos sinóticos: Mateus, Marcos, Lucas

Outros: João (evangelho) e Atos (histórico)

Cartas de Paulo: Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I e II Tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito, Filemom e Hebreus

Epístolas católicas: Tiago, I e II Pedro, I, II e III João, Judas

Apocalíptico: Apocalipse de João 

Uma resumo da história dos livros

Algumas observações precisam ser feitas. São 14 cartas tidas como escritas por Paulo tradicionalmente. Dessas, 7 certamente foram escritas por ele. Hebreus, diferentemente das outras 13 cartas, não possui nem a assinatura de Paulo, além de uma escrita diferente da dele. Hebreus em si nunca quis entrar para o grupo das cartas paulinas; foram os religiosos que o incluíram lá. Das 6 cartas restantes, temos II Tessalonicenses e Colossenses que possuem uma direta conexão com Paulo, podendo ter partes escritas ou ditadas por ele, mas não sendo completamente escritos por ele. Em relação a Efésios, I e II Timóteo e Tito tudo indica que eles não foram escritos por Paulo e que, na verdade, eram alguns discípulos querendo levar adiante o conhecimento que Paulo passava.

Em relação aos evangelhos, Marcos possui autoria anônima. Segundo uma tradição antiga, foi escrito por um homem chamado João Marcos, parente de Barnabé e companheiro de Paulo e Pedro em suas missões. A teoria mais aceita entre historiadores é que muito provavelmente Marcos foi o primeiro evangelho escrito e serviu de base para Mateus e Lucas juntamente com outro evangelho perdido denominado Q. Veja o esquema:

Provavelmente, os autores de Mateus e Lucas (os discípulos de Mateus e seguidores de Lucas, respectivamente) usaram o evangelho de Marcos e a Fonte Q como base e adicionaram as respectivas tradições orais de Mateus e Lucas.

O Evangelho de João, por sua vez, possui uma tradição bem diferente da dos evangelhos sinóticos, contendo muita Gnose, e tudo indica que foi escrito pelos discípulos de João. Já Apocalipse foi escrito pelo próprio João.

Os livros que não foram escritos pelos apóstolos, porém levam o nome do respectivo apóstolo, são assim não por má intenção, mas sim com a boa intenção de levar os ensinamentos do apóstolo (tradição oral) adiante. E como já explicado anteriormente, o valor do livro está, além da Gnose, na tradição oral que ele carrega. A mesma coisa serve para os apócrifos que veremos logo mais.

Analisando textos antigos dos pais da igreja vemos que cristãos preferiam a tradição verbal à escrita (igual os judeus nesse aspecto), por isso os textos só foram escritos muitos anos depois. (Em 2 Tess 2:15 fala: “(…) apeguem-se às tradições que lhes foram ensinadas (…)”, reforçando a relevância da tradição oral). Veja as estimativas das datas que os livros foram escritos:

Formação do cânon do Novo Testamento

Podemos observar 3 principais motivos para um livro ser aceito em um cânon: ser escrito por um apóstolo ou ter uma conexão direta com eles, ser aceito em grande parte das comunidades cristãs e a doutrina ser compatível com o cristianismo. 

Veja a ordem dos eventos que culminaram na formação do cânon do Novo Testamento (repare na simultaneidade com os eventos descritos sobre o AT):

– Clemente de Roma: foi um dos bispos mais importantes da época e escreveu uma carta aos coríntios entre os anos 90 e 100. Ele se referia aos escritos do AT como “escritura”, mas não se referia desta forma aos escritos contemporâneos a ele. Ou seja, uma das figuras mais importantes do cristianismo primitivo ainda não considerava os evangelhos e as epístolas como “escritura”. 

– Inácio de Antioquia (68 – 100/107), outra importante figura do cristianismo primitivo, também não considerava os escritos contemporâneos como “escritura”.

Os primeiros livros a receberem a autoridade de “escritura” foram as Cartas de Paulo. O próprio Paulo falava que suas cartas deveriam ser lidas em voz alta pelas igrejas. Mas quando foi isso?

– Papias de Hierápolis (60 – 130): considerava que ter uma tradição oral vinda dos apóstolos era muito mais importante que ter um texto escrito.

– Marcião de Sinope (85 – 160): falava que o cristianismo nada tinha a ver com o judaísmo e queria uma ruptura total entre essas religiões. Ele também achava que o Deus do AT não era o mesmo Deus que Jesus pregava, tendo assim, uma aproximação com ideias gnósticas. Certamente, ele foi um dos que melhor entendeu a Verdade. Aqui na EDL há muitos estudos sobre essas questões de Deus, Antigo e Novo Testamento para você entender tudo. Foi por volta do ano 144 que Marcião elaborou a primeira ideia sobre escritos canônicos. Seu cânon era o Evangelho de Lucas + 10 epístolas paulinas. Ele editou partes desses livros para retirar possíveis ensinamentos judaicos. Seu cânon foi rejeitado.

– Justino Mártir (100 – 165): relata, na metade do segundo século, que a igreja de roma tinha costume de ler, aos domingos, os 4 evangelhos e demais livros da Septuaginta. 

– A primeira vez que os evangelhos foram citados como autoridade foi após o ano 140 com Justino Mártir.

– A expressão “Antigo Testamento” só surgiu por volta do ano 170. Antes, os pais da igreja se referiam ao AT como “escritura” somente. 

– Irineu de Lião (130 – 202): podemos ver que no final do séc II os 4 evangelhos são considerados escrituras sagradas da mesma forma que o Antigo Testamento. Além dos evangelhos, Irineu também utilizava a maioria das Cartas de Paulo, rejeitava algumas das epístolas católicas (como Judas e III João) e também utilizava o livro Pastor de Hermas, que é um apócrifo atualmente. Aqui vemos que a ideia da necessidade de um cânon já pairava no cristianismo, já que, nessa época, muitos livros estavam sendo escritos a fim de defender algum ponto de vista cristão. Havia muitas dezenas de vertentes e interpretações cristãs no cristianismo primitivo.

– Cânon de Muratori (por volta de 170): nele vemos o Apocalipse de Pedro, também vemos Sabedoria de Salomão (no Novo Testamento mesmo sendo um apócrifo do AT), não incluindo o Pastor de Hermas – que fazia parte de alguns cânones na época – como sagrada escritura. O restante dos livros é muito semelhante ao cânon tradicional que temos hoje, apesar de haver controvérsias se alguns deles estão no Cânon de Muratori ou não.

– Orígenes de Alexandria (primeira metade do século III): cânon incluía todos os livros do moderno cânon do Novo Testamento, com exceção de quatro livros: Tiago, II Pedro, II João e III João. Ele também incluiu o Pastor de Hermas.

– Peshitta: é a versão padrão da Bíblia para as igrejas na tradição siríaca, onde foi traduzida para o siríaco no séc II, contemporaneamente ao Cânon de Muratori. Certos livros foram excluídos originalmente no Novo Testamento da Peshitta: 2 Pedro, 2 João, 3 João, Judas, Apocalipse de João. Ou seja, só tinha 22 livros; e assim permaneceu por dezenas de séculos em igrejas no oriente (ainda havendo algumas nessa tradição atualmente). 

– O Codex Vaticanus, do início do séc IV, continha os livros que temos hoje no Novo Testamento com exceção de I-II Timóteo, Tito, Filemon e Apocalipse.

– Eusébio de Cesaréia: ele cita por volta do ano 330, em sua obra História Eclesiástica, os livros que devem estar presentes no cânon e a ordem na qual devem se encontrar: os 4 evangelhos, Atos, epístolas de Paulo, I João, I Pedro e Apocalipse de João, respectivamente. Em seguida ele escreve: 

“Dos livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria, temos a Carta dita de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome. Entre os espúrios sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de Barnabé e a obra chamada Ensinamento dos Apóstolos, e ainda, como já disse, talvez, o Apocalipse de João: alguns, como disse, rechaçam-no, enquanto outros o contam entre os livros admitidos. Alguns ainda catalogam entre estes inclusive o Evangelho dos hebreus, no qual são muito contemplados os hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos.”.

Aqui vemos Eusébio citando toda a discussão acerca do cânon e, principalmente, relacionada a alguns livros específicos. Repare no modo de pensar dele. Ele continua falando sobre apócrifos que considerava heréticos:

“Mas creio ser necessário que exista um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferentes destes por não serem testamentários, mas discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer estes livros e os que com o nome dos apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomé, de Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, de João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou digno mencionar estes livros em seus escritos. Mas ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos apóstolos, o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente demonstram ser invenções de hereges. Por isso não devem ser incluídos nem mesmo entre os espúrios, mas devemos rechaçá-los como inteiramente absurdos e ímpios.”

– O Codex Sinaiticus, da metade do séc IV, continha os 27 livros que temos hoje no NT + Epístola de Barnabé e Pastor de Hermas.

– Atanásio de Alexandria: em um de seus escritos, por volta do ano 367, ele cita a lista dos 27 livros que temos hoje do Novo Testamento. Esse foi o primeiro registro do cânon do NT igual ao que temos hoje. A princípio, esse cânon não foi completamente aceito, afinal, Atanásio era um bispo regional, mas após um processo gradativo, esse veio a se tornar o cânon majoritariamente aceito. Atanásio citou a Didaqué e o Pastor de Hermas como bons para leitura mas não para entrar no cânon. 

– Os concílios de Roma, Hipona e Cartago (os mesmos citados na parte do Antigo Testamento), alguns anos depois de Atanásio, em 382, 393 e 397, respectivamente, chegaram à mesma conclusão, e afirmaram que o cânon do NT deve ser os 27 livros. Em 419, outro concílio em Cartago estabeleceu esse mesmo cânon bíblico.

– Por volta de 405, o Papa Inocêncio I enviou uma lista de livros sagrados contendo os 73 livros católicos ao bispo gaulês Exupério de Toulouse. 

– A partir do quinto século, com a aceitação do livro de Apocalipse de João por parte de algumas igrejas orientais, é que podemos afirmar que “o cristianismo aceita os 27 livros como o cânon do NT”, havendo, claro, algumas exceções, mas a grande parte concordando com esse cânon. Mesmo assim, os 27 livros só viraram norma a partir do Concílio de Trento (1545 – 1563).

Apócrifos do Novo Testamento

Os apócrifos são de vários tipos. Alguns são atribuídos aos apóstolos e possuem alto valor histórico e teológico, como o Evangelho de Tomé. Outros são textos que influenciaram muito a doutrina cristã primitiva, como a Didaqué. Outros certamente são pseudepígrafos (atribuídos a algum apóstolo, mas não de fato escrito por ele). Alguns pseudepígrafos foram de menor relevância, já outros foram importantíssimos pra cristandade e continham uma tradição oral muito influente, provavelmente advinda dos apóstolos, como o Apocalipse de Pedro. Outros, são textos e documentos que possuem alto valor histórico somente. Outros são textos gnósticos. E assim por diante.

Abordarei aqui os livros que de alguma forma se mostraram os mais relevantes em seus respectivos aspectos. Por exemplo, Didaqué, Apocalipse de Pedro, Epístola de Barnabé e Pastor de Hermas foram livros que por pouco não entraram para o cânon normativo – eles estiveram presentes em muito dos cânones propostos na época -, de tal forma que eles podem ser estudados como tendo, na prática, o mesmo (ou extremamente próximo) valor histórico e teológico dos livros canônicos. 

Alguns pseudepígrafos podem levar, como provavelmente levam, o nome do apóstolo porque carregam os ensinamentos – ou parte deles – do mesmo. Por exemplo, provavelmente o Protoevangelho de Tiago seja esse caso, e o Evangelho de Filipe, que mesmo sendo gnóstico, há muita chance que tenha ligação com Filipe. A mesma coisa serve para os demais apócrifos apresentados aqui.

Evangelho de Tomé

Foi escrito entre 50-140, podendo ser o mais antigo dos escritos do Novo Testamento, e é atribuído a Tomé. Além de conter uma base presente nos evangelhos canônicos, ele contém muita Gnose e uma tradição oral única e importantíssima, e complementa diretamente questões dos outros evangelhos. Nele temos cerca de 114 ditos atribuídos a Jesus. Há grande probabilidade desse evangelho ter sido escrito diretamente por Tomé. O livro relata a infância de Cristo e fala de um Jesus muito divino, trazendo questões muito polêmicas (por isso foi rejeitado e não entrou no cânon). Há conteúdo desse apócrifo aqui na EDL! É um livro essencial, tanto para a teologia quanto para a história. Veja mais sobre esse evangelho!

Didaqué (também chamado de Ensinamento dos Apóstolos ou Doutrina dos Doze)

Foi escrito entre 50-120 e é um dos textos mais antigos e relevantes do cristianismo primitivo. Esse livro esteve presente em muitos dos cânones antigos, quase entrando para o cânon normativo, e foi responsável por moldar parte da doutrina que os cristãos seguem até hoje. Ele fala sobre jejum, eucaristia, como diferenciar os verdadeiros dos falsos pregadores, instruções de batismo, orienta a orar o Pai Nosso 3 vezes ao dia e ensina a guardar o domingo como “Dia do Senhor”. Ele também fala de profecias do apocalipse, anticristo e segunda vinda parecidas com as do livros canônicos, como por exemplo a questão das nuvens. Uma curiosidade é que o livro fala que o cristão precisa estar puro na hora da volta de Cristo; ideia essa, que influenciou bastante a teologia católica e arminiana. 

Apocalipse de Pedro

Foi escrito no começo do séc II e é atribuído ao apóstolo Pedro, apesar de não ser diretamente escrito por ele. Esse livro foi absurdamente influente no consciente e inconsciente do cristianismo primitivo – influência esta que se reflete até os dias de hoje. Apesar de o livro não ter entrado para o cânon tradicional, mesmo com muitos cânones o colocando como ‘sagrada escritura’ (como o Cânon de Muratori que vimos anteriormente), foi por pouco que ele não entrou. Nesse livro, uma das revelações dadas a Pedro envolve descrições do céu, onde Deus eliminou o sofrimento, e os salvos vestem branco, podem ver os condenados no inferno e clamar a Deus por misericórdia. Também há uma descrição que Jesus deu do inferno, onde há tortura, vermes, fogo, feras e os condenados não podem se arrepender. Há profecias dadas por Jesus a seus discípulos e profecias apocalípticas semelhantes ao Apocalipse de João. Esse livro foi muito mais relevante na moldagem do consciente e inconsciente cristão que vários livros canônicos. 

Epístola de Barnabé

A epístola foi escrita entre o final do primeiro século e começo do segundo (com alguns defendendo como sendo escrita durante o período apostólico na década de 30 d.C.), sendo muito influente no cristianismo primitivo e entrando para vários cânones. A obra confrontava cristãos judaizantes, defendia que tudo que provinha de rituais judaicos deveria ser anulado e que a aliança de Deus com os judeus nada tinha a ver com os cristãos. Em nenhuma outra obra desta época fica tão clara a insistência na separação dos cristãos gentios e os judeus praticantes. A tradição e a teologia presente na epístola são importantíssimas para o cristianismo. Nela também vemos que os cristãos deveriam guardar os domingos ao invés dos sábados:

“Vede como ele diz: não são os sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus”. (Capítulo 15)

Pastor de Hermas

Uma obra escrita no início do segundo século que teve grande autoridade entre os séculos II e IV na cristandade e considerada como canônica por vários pais da igreja. Escrito por Hermas, o conteúdo do livro é cinco visões tidas por Hermas, seguidas de doze mandamentos, seguidos de dez parábolas. Na quinta visão, um anjo na forma de pastor entrega a Hermas o conjunto de doze mandamentos que desenvolvem a ética cristã. Após os mandamentos, Hermas canaliza 10 parábolas na forma de visões que são posteriormente explicadas pelo pastor (anjo). Tudo indica que o livro não entrou para o cânon normativo porque defendia a doutrina adocionista, que afirma que Jesus passou a divino somente após o batismo.

Evangelho de Filipe

Foi escrito entre 180-250, é um livro central no gnosticismo e tudo indica que seu autor utilizou de fontes mais antigas. Ele fala que a ressurreição é interna e em vida. Fala que a Virgem Maria é (ou era) virgem no sentido espiritual e não literal, e para sustentar essa tese ele argumenta que Jesus deveria falar apenas “meu pai” ao invés de falar “meu pai que estás no céu” caso ele não tivesse um pai terreno. O Evangelho de Filipe também fala da relação de Jesus e Maria Madalena, onde relata que Jesus a amava e os discípulos perguntavam o porquê do mestre a amar mais que eles. 

Evangelho de Judas

É um livro gnóstico escrito por volta da metade do século II. Nele fala que Judas foi o apóstolo que melhor entendeu os ensinamentos de Jesus, e que foi o escolhido para aprender os mistérios e livrar Jesus de sua corporalidade (livrá-lo da matéria). Também fala que Deus está dentro de cada um. É um texto clássico do gnosticismo. 

Protoevangelho de Tiago

O autor se passa por Tiago, irmão ou meio irmão de Jesus, mas não foi escrito diretamente por ele. Esse livro influenciou muito a doutrina cristã, principalmente a católica. Ele conta alguns detalhes sobre a vida de Maria antes de ter Jesus, como sua relação com José, idade, etc. Ele enfatiza que Maria seguiu com uma virgindade perpétua mesmo após o parto. Foi escrito no século II. Esse apócrifo é um exemplo claro onde o autor pode ter se baseado em uma tradição oral real advinda de Tiago, mas ao mesmo tempo tudo pode ter sido inventado por causa de alguma situação no contexto em que se encontrava. Observando de cima vemos que, de fato, o livro é coerente e muito importante para a história cristã.

Atos de Paulo e Tecla

Foi um livro escrito por volta de 160 que teve bastante circulação nos primeiros séculos, contendo tradições importantes para a compreensão da expansão do cristianismo primitivo. O texto conta que a jovem virgem Tecla passou a seguir Paulo em suas viagens após ouvi-lo. Ela passou a ensinar e batizar junto a Paulo, mostrando que homens e mulheres estão no mesmo nível, como Paulo escreve em Gálatas. Tecla buscava enfatizar bastante a importância da castidade, da forma que Paulo descreve em I Coríntios.

Ilustração em caverna re-descoberta em 1906 mostrando Tecla pregando ao lado de Paulo

Outros importantes tópicos:

Concílio de Niceia 325 d.C. e o imperador Constantino

Esse talvez seja o tópico mais polêmico de todos. Grande parte da internet defende com unhas e dentes que Constantino e os sábios baniram livros do cânon e/ou adulteraram os textos sagrados a bel-prazer. Muitos também defendem que foi Constantino que criou o que chamamos de cristianismo hoje. Para esse último tópico temos uma matéria do Mestre Bob sobre: Constantino criou o Cristianismo? 

Mas então, Constantino interferiu nos textos sagrados? De acordo com a academia, não há evidências históricas de interferência (nem de adulteração, nem de banimento, nem de qualquer modificação) na Bíblia e nos apócrifos por parte de Constantino e dos sábios no Concílio de Niceia. Nenhuma das fontes históricas, como as atas do concílio e os registros dos pais da igreja, corrobora com a teoria que Constantino e os sábios interviram no texto e/ou no cânon bíblico, seja modificando a escrita, seja removendo livros, etc. É consenso entre os historiadores que o concílio focou em outras questões como a controvérsia ariana, o debate sobre a divindade de Cristo, debate sobre o calendário judaico, entres outros pontos menos importantes que não nos são importantes agora, não havendo interferência.

Por que tanta gente afirma que Constantino foi o grande responsável por interferências e mudanças nos livros, então? Seria possível ele ter feito tudo o que falam e mesmo assim não haver provas históricas? E agora entra um argumento arrematador: temos os textos dos livros e registros de cânones anteriores e posteriores ao Concílio de Niceia. Ou seja, mesmo que Constantino e os sábios tenham feito tudo que falam por aí, não importa, já que temos toda a informação necessária para comprovar que eles não foram relevantes nesse aspecto para o cristianismo. Vimos muitos cânones propostos antes do concílio, que foram fundamentais para que o cânon normativo fosse formado. Também vimos propostas de cânones feitas após o concílio, provando que o concílio não interveio no debate do cânon. Também temos os textos dos livros bíblicos em manuscritos mais antigos que o concílio. Podemos constatar que o texto bíblico é verídico através da comparação desses textos anteriores ao concílio com textos posteriores (veja abaixo o tópico ‘Adulterações e traduções ao longo da história’). Com isso, temos o necessário para provar que, de fato, Constantino e os sábios NÃO interviram na Bíblia.

Se essa é a conclusão histórica, por que então existe a teoria que toda a Bíblia é uma grande manipulação de Constantino e do concílio? Várias respostas podem ser dadas a essa pergunta, mas focaremos aqui na perspectiva histórica. Como dito, não há evidências entre os registros do Primeiro Concílio de Niceia de qualquer determinação de um cânon específico, mas Jerônimo, décadas depois do concílio, em sua obra “Prólogo a Judite”, afirma que o Livro de Judite foi “determinado pelo Concílio como um dos que deveriam ser contados entre os livros das Sagradas Escrituras”. É fato, porém, que esta declaração não aparece nos registros do concílio e é incerto se Jerônimo está se referindo à utilização do livro nas discussões do concílio ou se ele foi levado ao erro por alguma lista canônica espúria atribuída ao concílio. Esse ocorrido por ter colaborado com a teoria que Constantino liderou a adulteração da Bíblia. Em 331, Constantino encomendou 50 Bíblias em grego koiné a Eusébio de Cesareia para o uso do bispo de Constantinopla. Esse evento também pode ter influenciado nas teorias sobre o concílio.

Vulgata Latina

Com a expansão do cristianismo, houve a necessidade de traduzir os textos em grego e hebraico para o latim. (Latim era a língua oficial do Império Romano). Os textos foram sendo traduzidos por copistas anônimos e foram denominados Vetus Latina, que significa “Latim Antigo” (um latim difícil para o povo). Nessa época, do século I ao IV, os cristãos não tinham um cânon fechado, então não havia um rigor sobre quais livros deveriam ser traduzidos. 

Após o Concílio de Roma, em 384, o Papa Dâmaso I convocou S. Jerônimo para compilar, rever e corrigir os textos que circulavam em Roma (Vetus Latina). Ele deveria adaptá-los para um latim vulgar, com a ajuda da tradução grega (Septuaginta). S. Jerônimo fez uma distinção entre livros canônicos e livros eclesiásticos. Estes últimos ele julgou como boa leitura espiritual, mas não foram reconhecidos como Sagrada Escritura.

A partir de 391, S. Jerônimo resolveu retraduzir todo o Antigo Testamento com base nos textos em hebraico e aramaico. Assim, ele traduziu todos os livros, incluindo os deuterocanônicos que foram estabelecidos no cânon pelo Concílio de Roma. No Novo Testamento, S. Jerônimo selecionou e revisou textos. A Vulgata estava pronta.

De início, sua tradução sofreu grande oposição, mas depois foi adotada como a versão oficial.

O nome Vulgata vem da expressão vulgata versio, isto é “versão de divulgação para o povo”.

Ela foi a primeira versão da Bíblia e foi usada pela Igreja Católica Romana durante muitos séculos. A denominação de Vulgata consolidou-se na primeira metade do século XVI.

Qual versão correta da Bíblia? Debate católico x protestante (com argumentos historicamente corretos)

Analisemos quais os argumentos que católicos e protestantes usam para justificar seu cânon:

– O principal argumento dos protestantes é o trecho da Bíblia de Romanos 3:2 que Paulo fala que “as palavras de Deus lhe foram confiadas”, se referindo aos judeus; sendo assim, o cânon do AT deve ser o igual ao cânon judaico. Católicos: os judeus não tinham um cânon formalizado até o século III, sendo assim, a cristandade precisou agir por conta própria, além de que a Septuaginta era o conjunto utilizado pelos judeus da diáspora. Protestantes: por mais que os judeus não tivessem um cânon formalizado, eles sabiam grande parte dos livros que eram sagrados, havendo dúvidas em relação a poucos livros. Católicos: mas a questão reside justamente nos poucos livros que haviam dúvidas, como os deuterocanônicos, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos e Ester.

– Protestantes argumentam que vários escritores da patrística propuseram cânones que rejeitavam os livros deuterocanônicos como sagrados, como Eusébio de Cesareia, Cirilo de Jerusalém, Basílio o grande, Gregório de Nazianzeno e S. Jerônimo. Católicos: apesar de alguns proporem o cânon judaico como o cânon do Antigo Testamento, outros pais da igreja e a cristandade como um todo não foi aceitaram isso, tanto que os concílios de Roma, Hipona e Cartago estabeleceram o cânon católico como o oficial. Protestantes: esses foram concílios locais, não ecumênicos, portanto não devemos imputar tanta responsabilidade a eles. Católicos: apesar de locais, os concílios foram grandes e muito relevantes, além disso, através deles que os cristãos se reuniram para debater o cânon, chegando na mesma conclusão canônica.

– Católicos argumentam que 85% das citações do Novo Testamento e a grande maioria das citações dos pais da igreja são de textos da Septuaginta e não da Tanakh, mostrando que os apóstolos e a igreja primitiva seguiam a Septuaginta, portanto a Bíblia deveria seguir a Septuaginta, não a Tanakh. Protestantes: apesar da igreja utilizar a Septuaginta, todas as citações que o Novo Testamento faz ao Antigo são referentes aos livros protocanônicos, não deuterocanônicos.

– Protestantes argumentam que os livros deuterocanônicos contradizem as doutrinas estabelecidas pelos livros protocanônicos, que neles há trechos deles mesmos se afirmando como de menor autoridade em relação aos protocanônicos, e que eles foram escritos no período intertestamentário.

– Católicos: a igreja tem autoridade divina para definir o cânon das Escrituras. Protestantes: a autoridade da Bíblia vem diretamente de Deus, e não da igreja, portanto, a única fonte para definir o cânon é a própria Bíblia. Católicos: da mesma forma que a tradição cristã definiu o cânon do NT e a tradição judaica o cânon da Tanakh, a tradição cristã definiu o cânon do AT como sendo o católico. 

Conclusão: os argumentos são igualmente poderosos e não há uma “versão correta”. Claro que esse debate é relevante para os religiosos, mas não para nós luciferianos que, vendo de cima para baixo, podemos ver os erros e acertos em qualquer lugar.

O cânon ortodoxo

As tradições das igrejas ocidentais e orientais foram se diferenciando com o passar do tempo. Em 692 d.C. ocorreu o Concílio Quinissexto, um concílio ecumênico aceito pelos ortodoxos e orientais, mas recusado pela igreja ocidental. A obra denominada Constituições Apostólicas (do séc IV) foi majoritariamente rejeitada por esse concílio, porém uma parte dela, batizada de “Cânone dos Apóstolos”, foi recebida pelo cristianismo oriental. Nessa parte, havia uma lista de livros para serem lidos na igreja. Essa lista é semelhante ao cânon tradicional, contendo poucas alterações, como a adição da Epístola de Barnabé e da Didaché, e a exclusão do Apocalipse no Novo Testamento. Dependendo da edição do Cânone dos Apóstolos, outros livros podem estar presentes na lista, como a Oração de Manassés e o Salmo 151 no Antigo Testamento, e I-II Clemente no Novo Testamento. As edições do Cânone dos Apóstolos (como a grega, Síria, Etíope, Copta, etc) coloboraram bastante com as variações nos cânones orientais.

A divergência entre o cânon bíblico ortodoxo e o católico ocorreu oficialmente em 1054, quando a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa se separaram em um evento conhecido como o Grande Cisma. Os ortodoxos aceitavam (e aceitam) outros livros além daqueles presentes no cânon católico na parte do Antigo Testamento (como já dito inúmeras vezes). Além disso, a ordem dos livros é diferente. 

O Concílio de Trento, a Reforma e o Concílio de Florença

O Concílio de Florença, que começou em 1431 na Basileia, mas foi transferido para Ferrara em 1438 por ordem do Papa Eugênio IV, foi um concílio ecumênico realizado até 1445 que visava reunir a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa que estavam separadas desde o Grande Cisma de 1054. Os líderes da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa concordaram em reconhecer o mesmo conjunto de livros do Antigo Testamento como canônicos. No entanto, a Igreja Ortodoxa não aceitou os livros deuterocanônicos como canônicos, apesar de reconhecer esses livros como inspirados. O Concílio de Florença não teve um grande impacto na definição do cânon bíblico, uma vez que a maioria dos livros já havia sido amplamente aceita como canônicos pela Igreja Católica. No entanto, o concílio contribuiu para a discussão e a consolidação das decisões anteriores sobre o cânon.

Desde o Concílio de Florença, a questão do cânon estava reaberta. Isso porque o avanço da filologia renascentista levantaram vários questionamentos sobre textos da Antiguidade. Nesse debate, Martinho Lutero se incomodava com quatro livros do Novo Testamento, chamados de “antilegomena”: Judas, Tiago, Hebreus e o Apocalipse. Por esse motivo, ele os posicionou numa posição secundária em relação aos demais, mas não os excluiu. Lutero, em seu prefácio à tradução do Novo Testamento em 1522, escreveu que os livros deuterocanônicos, incluindo Judite, Tobias, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e I e II Macabeus, eram “úteis e bons para leitura”, mas que eles não eram canônicos.

Somente no Concílio de Trento (concílio católico da Contrarreforma), em 8 de abril de 1546, que o cânon bíblico católico se tornou oficial, tornando-se norma. Nesta ocasião que os livros em disputa foram denominados deuterocanônicos, um termo que não indica um grau inferior de inspiração divina e sim uma data posterior de confirmação e aprovação. O Concílio de Trento foi uma resposta da Igreja Católica à Reforma Protestante e às críticas que surgiram sobre o cânon bíblico, especialmente em relação aos livros deuterocanônicos. Ao contrário do Concílio de Florença, o Concílio de Trento teve um grande impacto na definição do cânon bíblico, pois suas decisões foram reconhecidas como oficiais pela Igreja Católica e tiveram grande influência na história da igreja cristã ocidental. Além disso, o Concílio reforçou a importância da tradição e do magistério da Igreja como fontes de autoridade na interpretação da Bíblia, o que se tornou um dos pilares da teologia católica.

Adulterações e traduções ao longo da história

O quão próximo dos textos originais está nosso texto bíblico atual? Muitos fazem essa indagação. Vamos aos pontos:

A Bíblia é o livro mais amplamente copiado da história, com muitas cópias antigas que sobreviveram até os dias atuais. Isso permite que os estudiosos possam comparar as várias versões e identificar possíveis alterações no texto. Temos 43% do Novo Testamento em fragmentos de manuscritos do séc II, e o NT inteiro em manuscritos dos séculos III e IV. Existem mais de 5.800 manuscritos gregos do Novo Testamento (sendo 6% destes manuscritos da Antiguidade), além de milhares de manuscritos em outras línguas antigas, como o latim, o copta e o siríaco. Esses manuscritos datam de diferentes períodos históricos e foram encontrados em diferentes partes do mundo. Neles encontramos poucas variações textuais, que não afetam o significado do texto. No NT temos, em média, 1 variante textual a cada 6,5 páginas, sendo somente 1% dessas variantes significativas. O que é encontrado são pequenas variações como ortografia, pontuação e outros aspectos gramaticais. Além disso, a diversidade geográfica das cópias, bem como as diferenças nas línguas usadas nas cópias, aumenta a confiabilidade do texto bíblico.

Testemunhos de escritores antigos – Vários escritores antigos, incluindo cristãos e não cristãos, fazem referência à Bíblia e citam passagens específicas dela em suas obras. Esses testemunhos fornecem evidências independentes da existência e do conteúdo da Bíblia ao longo da história. Além disso, muitos desses escritores antigos falam sobre a importância da preservação do texto original e criticam aqueles que introduziriam alterações ou modificações. Também temos bem mais de 1 milhão de citações bíblicas dos pais da igreja, permitindo assim, uma reconstrução completa do Novo Testamento apenas com esse material.

Consistência entre as cópias – As cópias da Bíblia que sobreviveram até hoje são notavelmente consistentes umas com as outras. Mesmo as cópias mais antigas, que datam de séculos atrás, são notavelmente semelhantes às versões modernas. Isso sugere que as pessoas que copiaram a Bíblia ao longo dos séculos se esforçaram para preservar o texto original e evitar a introdução de alterações significativas. Em relação ao Antigo Testamento especificamente, temos os Manuscritos do Mar Morto: uma coleção de documentos antigos, datados entre entre os séculos II a.C e I d.C., foram descobertos entre 1947 e 1956 em cavernas no deserto da Judeia, perto do Mar Morto. Encontraram grande parte do AT e alguns apócrifos. Os manuscritos mostraram que as cópias mais recentes dos textos bíblicos são extremamente precisas, já que as diferenças entre as cópias antigas e as cópias modernas são muito pequenas, sem importância teológica. Além disso, a tradição judaica sempre se preocupou com a precisão da transmissão dos textos e das tradições, sendo muito confiável.

As traduções da Bíblia para outras línguas ao longo da história ajudaram a preservar o texto bíblico original, podendo ser usadas para a verificação do conteúdo do texto. A tradução para outras línguas muitas vezes resulta em uma melhor compreensão do texto, pois permite que as palavras e expressões sejam explicadas em contexto cultural e histórico diferente. Isso também ajuda a identificar erros e inconsistências em manuscritos individuais, o que ajuda a manter a integridade do texto bíblico. Dessa forma, a tradução da Bíblia ajudou a preservar o texto bíblico e garantir sua integridade, ajudando a torná-lo amplamente acessível em todo o mundo e facilitando seu estudo e compreensão. Uma verdadeira criptografia.

As contradições na Bíblia também provam que os textos não foram adulterados. Muitos alegam que Constantino e a Igreja Católica manipularam os textos para impor seus ideais ao povo. Qualquer um que fosse manipular os textos deixaria tudo alinhado – sem contradições – para que sua imposição fosse efetiva, mas é justamente o contrário que ocorre. Vemos muitas contradições na Bíblia, 2 exemplos são: a idade de Acazias que diverge em II Reis 8:26 e II Crônicas 22:2, e de acordo com Atos dos Apóstolos, Paulo esteve em Jerusalém 4 vezes, mas de acordo com suas próprias cartas, ele esteve somente 2. Agora, como as contradições são posicionadas e porque a Bíblia tem contradições, são temas que ficam pra outra matéria. 

Alguns historiadores alegam que houveram acréscimos e omissões de passagens específicas em alguns manuscritos por parte de copistas com a intenção de corroborar com suas respectivas visões teológicas. Um exemplo de acréscimo seria Mateus 16:18-19, e omissão 1 João 5:7-8. Sendo verdade ou não, qualquer acréscimo ou omissão não tem capacidade de mudar a teologia cristã como um todo.

Podemos concluir que, de fato, o texto bíblico é muito confiável. Na verdade, podemos dizer que é o texto mais confiável de todos historicamente falando, já que ele é disparado o texto mais copiado no mundo. 

Síntese e conclusão

Muitas complexidades se apresentaram ao longo da história para a Bíblia chegar à sua forma definitiva de hoje, desde as tradições passadas por gerações, até a escrita dos textos e compilação dos livros.

Vamos recapitular, vendo a história como um todo:

Os textos judaicos começaram a ser escritos cerca de 1000 a.C., algum tempo após Moisés, que viveu no século XIV a.C. Após o exílio na Babilônia, nos séculos VI e V a.C., vemos a Torah e a maior parte do Nevi’im (Profetas) escritos, e temos o início da preocupação judaica em formalizar um cânon. A partir dos séculos IV-III a.C. os textos hebraicos (e aramaicos) considerados sagrados pelas comunidades judaicas foram sendo traduzidos para o grego koiné. A coleção de textos traduzidos é a famosa Septuaginta. 

É nesse contexto, durante o século I d.C. e início do séc II d.C., que os livros do Novo Testamento foram escritos. A partir desse período, vemos os pais da igreja formando e propondo cânones bíblicos, alguns enfatizando os textos do Antigo Testamento, outros enfatizando os do Novo Testamento. Dentro dessa circunstância, muitas polêmicas sobre os livros apócrifos, como os deuterocanônicos e outros evangelhos, se desdobraram. 

Podemos dizer que a partir dos concílios de Roma, Hipona e Cartago no final do séc IV que o cânon bíblico estava praticamente consolidado. Por volta de 405, o Papa Inocêncio I enviou uma lista de livros sagrados contendo os 73 livros católicos ao bispo gaulês Exupério de Toulouse, confirmando a consolidação. Apesar disso, os livros do cânon católico só viraram norma no Concílio de Trento em 1546. Esse concílio foi uma resposta à Reforma Protestante, que estava discutindo os livros canônicos novamente. Os protestantes, por sua vez, adotaram os livros do cânon judaico para o Antigo Testamento.

Vimos também vários pontos referentes aos apócrifos. Muitas das doutrinas e tradições presentes no cristianismo ainda hoje vieram de apócrifos que eram considerados sagrados por muitos. Algumas das tradições e doutrinas estão relacionadas ao batismo, à Maria, ao inferno e ao céu, ao Apocalipse, ao Domingo e Sábado, etc. Tradições e doutrinas presentes na Antiguidade também. Também vimos os apócrifos do Antigo Testamento, alguns que influenciaram a escrita dos livros bíblicos, como o Livro de Jasher, outros que influenciaram a tradição, como Enoque. 

Por fim, vimos a história do Concílio de Niceia e da Vulgata Latina, frequentemente citada em discussões, além a resposta para o debate “qual a versão e canon correto da bíblia?” e um estudo sobre a procedência dos textos bíblicos. A Bíblia que possuímos hoje é muito confiável por diversos motivos. Nem as traduções, nem Constantino, nem qualquer outro fator adulterou os textos bíblicos. 

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Sobre o Autor

Mateus Oliveira

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A Loucura anda de mãos dadas com a Coerência

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