O designer Cícero Moraes, que vive em Sinop (MT), tornou-se um pioneiro ao usar a tecnologia 3D na reconstrução da face de um animal doméstico primitivo, o Cão de Muge, que viveu há cerca de 7,6 mil anos, descoberto em Portugal. É a primeira vez que a tecnologia é usada na reconstituição da cabeça desse animal.
O projeto de reconstituição facial, que contou com um doador virtual da espécie pastor belga-malinois, começou ser pensado em 2021 e foi finalizado em 2022. A face do Cão de Muge foi apresentada pela primeira vez em artigo científico publicado no site mdpi.com, na semana passada. Moraes usou a mesma tecnologia na reconstituição do casco de uma jabota, que teve a peça destruída em um incêndio.
A partir do trabalho do designer, a reconstrução em 3D ganha, também, espaço na arqueologia, avalia Ana Elisabete Pires, diretora da Associação Portuguesa de Biólogos e professora da Universidade Lusófona – Faculdades de Medicina Veterinária e Biologia. Em entrevista por e-mail ao Estadão, ela explica que o trabalho abre espaço “na identificação nos achados zooarquológicos”.
O animal Mesolítico
O cão de Muge é do período Mesolítico e, por isso, segundo os especialistas, sua reconstituição é “extremamente importante” porque será possível manter a história e a pré-história documentadas. O esqueleto foi descoberto por arqueólogos no fim do século 19, em Muge, Portugal. Essa reconstituição foi possível depois do conhecimento da prática das reconstruções faciais, que tem sido utilizada para melhorar também a qualidade de vida (como o caso da tartaruga) e, desta vez, serviu para a reconstituição do cão. De acordo com Ana Elisabete Pires, o animal é um produto importantíssimo de um processo de domesticação muito antigo, o primeiro cujo propósito “é modo ainda a desvendar”.
A diretora destaca que o estudo multidisciplinar combinou anatomia, veterinária, aspectos zooarqueológicos, artísticos e gráficos para permitir a reconstrução facial do animal. “As pesquisas sobre ele foram sendo realizadas ao longo do tempo”, argumenta. Sobre este exemplar, ela informa ainda que foram realizadas análises de isótopos para a datação direta e inferência da dieta, de genômica, na tentativa de conhecer sua linhagem materna, o sexo e algumas características morfológicas, veterinária e radiológica para estimativa da idade. Além da reconstrução tridimensional do exemplar por técnicas de deformação e aplicação de alguma componente artística.
O designer brasileiro conta que foi procurado por Hugo Matos Pereira, da Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Lusófona de Humanidade de Lisboa, sobre o uso do programa OrtogOnBlender, desenvolvido por ele. Matos o convidou para integrar o grupo de estudiosos. “Achei a ideia muito interessante e topei imediatamente”, conta.
Uma equipe multidisciplinar foi formada por acadêmicos e cientistas de Portugal das áreas de ciências animais, veterinária, história, humanidades, além de arqueologia, sob a supervisão de Ana Elizabete Pires, que é membro da Direção Executiva da Associação Portuguesa de Biólogos.
Desafios
Moraes conta ainda que entre os desafios na reconstituição estão o nível de deslocamento de osso e a ausência de partes anatômicas do crânio, além de informações precisas sobre espessura do tecido mole para cães modernos. “Embora seja uma aproximação, confere um reconhecimento a esse achado pré-histórico”, explicam ele e a professora Ana Elisabete.
O designer recebeu os dados da Tomografia do Fóssil do Muge, fez adaptação com a reconstrução facial humana e confecções de próteses. O próximo passo, segundo Moraes, é a construção do corpo inteiro. “A reconstrução pode beneficiar nossa compreensão da morfologia desses animais e ajudar o público em geral a interpretar dados científicos que às vezes são enigmáticos”, diz ele em trecho do artigo.
E ressalta que a pesquisa usou informações de um cão da pastor belga-malinois, que foi doador virtual. O cão de Muge é um dos mais antigos esqueletos caninos quase completos encontrados em território português.
As escavações em Muge começaram em 1864 por Carlos Ribeiro e o cão que agora teve a face reconstruída foi descoberto em 1880, quando metade do monte de conchas foi escavado para mostrar o local aos cientistas visitantes do 9.º Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica, em Lisboa. O esqueleto de Muge só foi redescoberto dentro da gaveta do armário do Museu Geológico de Lisboa, 120 anos depois.
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