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À primeira vista, efeitos quânticos e organismos vivos parecem ocupar domínios completamente diferentes. Os primeiros são geralmente observados apenas em uma escala nanométrica, cercados pelo vácuo rígido, com temperaturas baixíssimas e um ambiente laboratorial rigorosamente controlado; enquanto os últimos habitam o mundo macroscópico, que é quente, “confuso”, e qualquer coisa, menos controlado. Um fenômeno quântico, como a “coerência”, fenômeno que ocorre quando um sistema quântico existe numa sobreposição de dois ou mais estados simultâneos, não duraria um microssegundo no reino tumultuado da célula.
Pelo menos era isso que todos pensavam. Porém, descobertas nos últimos anos sugerem que a natureza conhece alguns truques que os físicos não conhecem: processos quânticos coerentes podem muito bem estar presentes no mundo natural. Exemplos conhecidos ou suspeitos variam da habilidade das aves de navegar usando o campo magnético da Terra aos mecanismos internos da fotossíntese – o processo pelo qual as plantas e bactérias transformam a luz solar, o dióxido de carbono e água em matéria orgânica (sem dúvida, a reação bioquímica mais importante da Terra).
A biologia tem um talento especial para usar aquilo que funciona, diz Seth Lloyd, físico do Massachusetts Institute of Technology em Cambridge. E se isso significa “hanky-panky quântico” (termo inglês que pode ser traduzido por “trapaça”), diz ele, “então hanky-panky quântico” é.
Alguns pesquisadores já começaram a falar de uma disciplina emergente chamada biologia quântica, argumentando que os efeitos quânticos são um ingrediente vital, embora raro, do funcionamento da natureza. Os físicos experimentais, interessados na tecnologia, estão prestando muita atenção nisso. “Esperamos ser capazes de aprender com a proficiência quântica desses sistemas biológicos”, diz Lloyd. Uma melhor compreensão de como os efeitos quânticos são mantidos em organismos vivos poderia ajudar os pesquisadores a alcançar o objetivo indescritível da computação quântica, diz ele. “Ou talvez possamos construir melhores dispositivos de armazenamento de energia ou melhores células solares orgânicas.”
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Localização de rota energética
Há muito tempo os pesquisadores suspeitavam de que algo inusitado estava em andamento na fotossíntese. Partículas de luz chamadas fótons, que fluem do Sol, chegam aleatoriamente às moléculas de clorofila e outros pigmentos de “antena”, que absorvem a luz, que se aglomeram dentro das células de cada folha e de cada bactéria fotossintética. Mas, uma vez que a energia dos fótons é depositada, ela não permanece aleatória. De alguma forma, a luz é canalizada para um fluxo constante em direção ao centro de reação fotossintética celular, que pode usá-la com a máxima eficiência para converter dióxido de carbono em açúcares.
Desde a década de 1930, os cientistas reconheceram que essa jornada deve ser descrita pela mecânica quântica, ao qual sustenta que partículas, como os elétrons, muitas vezes se comportam como ondas, i.e. a famosa dualidade partícula-onda. Os fótons que atingem uma molécula de ”antena” na célula irão disparar ondulações de elétrons energizados – éxcitons – como uma rocha que espirra água de uma poça submersa. Estes éxcitons passam então de uma molécula de clorofila para outra, até alcançarem o centro da reação principal. Mas será que o caminho deles é feito através de saltos aleatórios e não-direcionados, como os pesquisadores inicialmente assumiram? Ou seus movimentos poderiam ser mais organizados? Alguns pesquisadores atuais tem sugerido que os éxcitons são coerentes, com suas ondas, estendendo-se para mais de uma molécula, enquanto, simultaneamente, permanecem na etapa que se encontram, reforçando um ao outro.
“A natureza conhece alguns truques que os físicos não conhecem.”
Se assim for, há um corolário surpreendente. Ondas de coerência quântica podem existir em dois ou mais estados ao mesmo tempo, portanto, os éxcitons coerentes seriam capazes de se moverem através da ”floresta” de moléculas de ”antena”, por duas ou mais rotas simultaneamente. Na verdade, eles poderiam simultaneamente explorar uma infinidade de opções possíveis e selecionar automaticamente o caminho mais eficiente para o centro da reação fotossintética na célula.
Quatro anos atrás, duas equipes trabalhando sob a supervisão de Graham Fleming, um químico da UC-Berkeley, foram capazes de obter dados experimentais para apoiar esta hipótese (ver ‘Quantum fact meets fiction’). A primeira equipe usou uma série de pulsos de laser muito curtos para sondar o aparato fotossintético da bactéria verde sulfurosa Chlorobium tepidium. Os pesquisadores tiveram que resfriar suas amostras para 77K com nitrogênio líquido, mas os dados de suas sondas a laser mostraram evidências claras dos estados exciton coerentes. A segunda equipe realizou um estudo semelhante com bactéria purpura sulfurosa Rhodobacter sphaeroides e encontrou a mesma coerência eletrônica operando a temperaturas de até 180K.
Em 2010, os pesquisadores do primeiro grupo publicaram evidências de coerência quântica em seu complexo bacteriano à temperatura ambiente – mostrando que a coerência não é apenas um artefato de condições laboratoriais criogênicas, mas pode realmente ser importante para a fotossíntese no mundo real. Na mesma época, uma equipe liderada por Gregory Scholes, químico da Universidade de Toronto, no Canadá, também relatou efeitos de coerência a temperaturas ambientes – desta vez não em bactérias, mas em algas fotopolíticas cryptophytes, organismos evolutivamente distintos que estão mais intimamente relacionados com plantas e animais, e que usam diferentes grupos químicos de absorção de luz.
Mas como a coerência quântica pode durar o suficiente para ser útil na fotossíntese? A maioria dos físicos tem assumido que, à temperatura ambiente, o caos molecular envolvente na célula destrói a coerência quase que instantaneamente, isto é, ocorrendo a decoerência.
Entretanto, simulações computacionais realizadas por Lloyd e alguns de seus colegas sugerem uma resposta: o ruído aleatório no ambiente pode realmente aumentar a eficiência da transferência de energia na fotossíntese em vez de degradá-la. Acontece que um éxciton pode, às vezes, ficar preso em determinados locais da cadeia fotossintética, mas as simulações sugerem que o ruído ambiental pode agita-lo suavemente o suficiente para evitar a destruição da sua coerência. De fato, diz Lloyd, “o ambiente liberta o éxciton e permite que ele chegue aonde ele está indo”.
A fotossíntese não é o único exemplo de efeitos quânticos na natureza. Por exemplo, os pesquisadores sabem há vários anos que, em algumas reações catalisadas por enzimas, os prótons se movem de uma molécula para outra, pelo fenômeno quântico de tunelamento, no qual uma partícula passa por uma barreira energética ao invés de usar a energia para escalar sobre a barreira. E uma controvertida teoria acerca do olfato afirma que a sensação do cheiro vem da detecção bioquímica de vibrações moleculares – um processo que envolve o tunelamento de elétrons entre a molécula responsável pelo odor e o receptor que se liga em células olfativas.
Esses exemplos são suficientes para justificar uma nova disciplina? Robert Blankenship, um pesquisador de fotossíntese na Universidade de Washington em St Louis, Missouri, admite algum ceticismo. “Meu senso é que pode haver alguns casos, como os que já conhecemos, onde esses efeitos são importantes”, diz ele, “mas que muitos, se não a maioria, dos sistemas biológicos não usam efeitos quânticos como esses” Mas Scholes acredita que há motivos para otimismo, dada uma definição ampla de biologia quântica. “Eu acho que existem outros exemplos na biologia, onde um entendimento no nível quântico, nos ajudará apreciar mais profundamente como o processo funciona”, diz ele.
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A bússola aérea dos pássaros
Um enigma biológico de longa data que poderia ser explicado por efeitos quânticos exóticos é como alguns pássaros são capazes de navegar pela detecção sensorial do campo magnético da Terra.
O sensor magnético aviário é conhecido por ser ativado pela luz ao atingir a retina do pássaro. A melhor suposição atual dos pesquisadores sobre o mecanismo é que a energia depositada por cada fóton recebido, cria um par de radicais livres – moléculas altamente reativas, cada uma com um elétron não-emparelhado. Cada um desses elétrons sem um par, tem um momento angular intrínseco, ou spin, que pode ser reorientado por um campo magnético. À medida que os radicais se separam, o elétron não emparelhado em uma molécula é influenciado principalmente pelo magnetismo de um núcleo atômico próximo, enquanto que o elétron não emparelhado na outra molécula é mais distante do núcleo e sente apenas o campo magnético da Terra. A diferença nos campos desloca o par radical entre dois estados quânticos com reatividade química diferente.
“Uma versão da ideia seria que alguma substância química é sintetizada” nas células retinianas da ave quando o sistema está em um estado, mas não quando está no outro estado, diz Simon Benjamin, físico da Universidade de Oxford, no Reino Unido. “Sua concentração reflete a orientação de campo da Terra.” A viabilidade dessa ideia foi demonstrada em 2008 em uma reação fotoquímica artificial, na qual os campos magnéticos afetaram a vida de um par de radical.
Benjamin e seus colaboradores propuseram que os dois elétrons não-pareados, criados pela absorção de um único fóton, existam em estado de emaranhamento quântico: uma forma de coerência em que a orientação de um spin permanece correlacionada com a do outro, não importando quão distantes os radicais se movam. O entrelaçamento é geralmente bastante delicado à temperatura ambiente, mas os pesquisadores calculam que ele é mantido na bússola das aves pelo menos por algumas dezenas de microssegundos – muito mais do que é possível em qualquer sistema molecular artificial atualmente.
Essa detecção magnética assistida quântica poderia ser generalizada. Não só as aves, mas também alguns insetos e até mesmo plantas demonstram respostas fisiológicas aos campos magnéticos – por exemplo, a influência inibidora do crescimento de luz azul sobre a planta de floração Arabidopsis thaliana é moderada por campos magnéticos de uma forma que também pode usar pares de radicais em seu mecanismo. Mas para obter a prova de que funciona dessa maneira, diz Benjamin, “precisamos entender as moléculas básicas envolvidas e depois estudá-las no laboratório”.
Benefícios selecionados
A coerência quântica na fotossíntese parece ser benéfica para os organismos que a utilizam. Mas será que a sua capacidade de explorar os efeitos quânticos evoluiu através da seleção natural? Ou é apena coerência quântica em um efeito secundário acidental da forma como certas moléculas são estruturadas? “Há muita especulação sobre a questão evolucionária e um monte de mal-entendidos”, diz Scholes, que está longe de ter certeza sobre a resposta. “Não podemos saber se este efeito na fotossíntese é selecionado, nem se há a opção de não usar coerência para mover a energia dos elétrons. Não existem dados disponíveis para resolver a questão “.
Ele aponta não ser óbvio o porquê da seleção favorecer a coerência. “Quase todos os organismos fotossintéticos passam a maior parte do dia tentando moderar a absorção de luz. É raro ser limitado pela luz. Então, por que haveria uma pressão evolutiva para ajustar a eficiência da absorção da luz?” Fleming concorda: ele suspeita que a coerência quântica não é adaptativa, mas é simplesmente “um subproduto da embalagem densa de cromóforos necessários para otimizar a absorção solar”. Scholes espera investigar a questão comparando proteínas de antenas isoladas de algas criptófitas que evoluíram em momentos diferentes.
Mas mesmo que a coerência quântica nos sistemas biológicos seja um efeito trivial, acrescenta Fleming, suas consequências são extraordinárias, tornando os sistemas insensíveis à desordem na distribuição da energia. Além disso, diz ele, “possibilita a transferência de energia unidirecionalmente retificadora “, produz a taxa mais rápida de transferência de energia, é insensível à temperatura e provavelmente algumas outras coisas que eu não pensei”.
Estes efeitos, por sua vez, sugerem aplicações práticas. Talvez mais óbvio, diz Scholes, uma melhor compreensão de como os sistemas biológicos alcançam a coerência quântica em condições ambientais “mudará a maneira como pensamos sobre projetos de estruturas de absorção da luz”. Isso poderia permitir que os cientistas construíssem tecnologias com células solares com eficiências de conversão de energia melhorada. Seth Lloyd considera isso “uma expectativa razoável”, e está particularmente esperançoso de que sua descoberta, do papel positivo do ruído ambiental, seja útil para a engenharia de sistemas fotônicos, usando materiais como pontos quânticos (cristais de nano-escala) ou altamente ramificados e cravejados com grupos químicos de absorção de luz, que podem servir como matrizes de antena artificial de polímeros.
Outra área de potencial de aplicação está na computação quântica. O objetivo de longo prazo dos físicos e engenheiros que trabalham nessa área tem sido manipular dados codificados em bits quânticos de informação, como os estados de spin-up e spin-down de um elétron ou de um núcleo atômico. Qubits podem existir em ambos os estados simultaneamente, permitindo assim a exploração simultânea de todas as respostas possíveis para a computação que eles codificam. Em princípio, isso daria aos computadores quânticos o poder de encontrar melhores soluções para problemas, com muito mais rapidez que os computadores de hoje – mas somente se os qubits puderem manter sua coerência, sem o ruído do ambiente circundante, como o empurrão de átomos vizinhos, destruindo a sincronia das ondas, isto é, a coerência.
A biologia de alguma forma resolveu esse desafio: na verdade, a coerência quântica permite que um fotossistema realize uma computação quântica do “melhor caminho” para os elétrons. Benjamin, cujo principal interesse é projetar sistemas de materiais para computação quântica e tecnologia da informação, vê a bússola aviária de temperatura ambiente como um guia potencial. “Se pudermos descobrir como a bússola do pássaro se protege da decoerência, isso pode apenas nos dar algumas pistas na busca de criar tecnologias quânticas”, diz ele. Aprender com a natureza é uma ideia tão antiga quanto a mitologia – mas até agora ninguém imaginou que o mundo natural (macro) teria algo a nos ensinar sobre o mundo quântico.
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Fonte: Nature
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