
Nem tudo era sĂł batalhas e derramamento de sangue. Havia tambĂ©m coexistĂȘncia, compromisso polĂtico, comĂ©rcio, intercĂąmbio cientĂfico â atĂ© mesmo amor.
Costuma-se dizer que os vencedores ditam a histĂłria. Mas nĂŁo Ă© assim para as guerras santas medievais conhecidas como Cruzadas.
No final das contas, as forças muçulmanas expulsaram os cristĂŁos europeus que invadiram o MediterrĂąneo oriental repetidamente nos sĂ©culos XII e Xiii â e frustraram seus esforços para recuperar o controle de locais sagrados da Terra Santa, como JerusalĂ©m. Ainda assim, a maioria das histĂłrias das Cruzadas oferece uma visĂŁo amplamente unilateral, extraĂda originalmente das crĂŽnicas medievais europeias, depois filtrada por estudiosos ocidentais dos sĂ©culos XVIII e XIX.
Mas como os muçulmanos da Ă©poca viam as invasĂ”es? (Nem sempre tĂŁo contenciosamente, ao que parece.) E o que eles achavam dos intrusos europeus? (Um clichĂȘ comum: âbĂĄrbaros sujosâ.) Para uma visĂŁo diferenciada do mundo muçulmano medieval, o HISTORY conversou com dois estudiosos proeminentes: Paul M. Cobb, professor de HistĂłria IslĂąmica na Universidade da PensilvĂąnia, autor de Race for Paradise: An Islamic History of the Crusades e Suleiman A. Mourad, professor de religiĂŁo no Smith College e autor de The Mosaic of Islam.
HISTORY: Em termos gerais, como as perspectivas islĂąmicas sobre as cruzadas diferem daquelas das fontes cristĂŁs da Europa Ocidental?
Suleiman Mourad: Se escrevĂȘssemos a histĂłria das Cruzadas com base em narrativas islĂąmicas, seria uma histĂłria completamente diferente. Sem dĂșvida houve guerras e derramamento de sangue, mas essa nĂŁo foi a Ășnica histĂłria dominante. Havia tambĂ©m coexistĂȘncia, compromisso polĂtico, comĂ©rcio, intercĂąmbio cientĂfico, amor. Temos poesia e crĂŽnicas com evidĂȘncias de casamentos mistos.
As perspectivas muçulmanas correspondem às ocidentais em termos de cronologia e geografia?
Paul Cobb: Cronologicamente, as fontes muçulmanas diferem das cristĂŁs porque nĂŁo reconhecem as Cruzadas. Eles reconhecem os eventos que hoje chamamos de Cruzadas simplesmente como outra onda de agressĂŁo franca ao mundo muçulmano. (Eu uso âfrancosâ para me referir aos cristĂŁos ocidentais.) Para eles, as Cruzadas nĂŁo começaram em Clermont com o discurso do Papa Urbano em 1095 [reunindo os cruzados], como dizem a maioria dos historiadores, mas sim dĂ©cadas antes. Por volta de 1060, os cristĂŁos nĂŁo estavam apenas mordiscando os limites do mundo islĂąmico, mas na verdade conquistando territĂłrio na SicĂlia e na Espanha. E enquanto a maioria dos historiadores ocidentais reconhecem a queda do Acre em 1291 como o fim das principais cruzadas, os historiadores muçulmanos nĂŁo veem o fim da ameaça franca atĂ©, eu diria, meados do sĂ©culo XV, quando os exĂ©rcitos otomanos conquistaram Constantinopla.
SM: Se dissermos que as Cruzadas começaram em Clermont em 1095 e terminaram em Acre em 1291, estamos nos enganando. A história não é tão limpa. O que veio antes e depois refletiu muita continuidade e não uma mudança abrupta.
E geograficamente?
PC: Os muçulmanos viam a ameaça franca como abrangendo todo o MediterrĂąneo. NĂŁo se tratava apenas de francos invadindo JerusalĂ©m, mantendo-a por 87 anos e partindo, mas um ataque consistente e de longo prazo Ă s ĂĄreas mais expostas da borda mediterrĂąnea do mundo muçulmano â Espanha, SicĂlia, Norte da Ăfrica e o que agora Ă© a Turquia â ao longo de centenas de anos.
Vamos voltar. Quando as Cruzadas começaram, quais eram as fronteiras fĂsicas do mundo islĂąmico?
PC: O mundo islĂąmico â ou seja, aquelas terras que reconheciam os governantes muçulmanos e a autoridade da Lei IslĂąmica â era muito maior do que a terra do Ocidente latino-cristĂŁo. Estendia-se da Espanha e Portugal no oeste atĂ© a Ăndia no leste. E da Ăsia Central ao norte ao SudĂŁo e ao chifre da Ăfrica ao sul.
Naquela Ă©poca, o nĂșcleo do mundo islĂąmico estava dividido entre uma dinastia xiita no Egito e uma dinastia sunita na SĂria e no Iraque. Mas eventualmente houve um movimento em direção Ă unificação, certo?
PC: Saladino, o herĂłi contra-cruzado mais famoso do IslĂŁ, era um polĂtico muito astuto que sabia que precisava colocar sua prĂłpria casa em ordem antes que pudesse lidar com os francos. Ele assumiu o controle do Egito e começou a reconquistar a SĂria e partes do Iraque. Ele iria finalmente recapturar JerusalĂ©m dos cruzados e empurrĂĄ-los de volta para uma faixa estreita ao longo do MediterrĂąneo.
Fale-me sobre a civilização islùmica medieval. Não houve um florescimento nos séculos IX e X?
SM: Na verdade, a âera de ouroâ do IslĂŁ vai muito mais longe, de que do sĂ©culo IX ao XIV â e se move, de BagdĂĄ a Damasco e Cairo. Nessa Ă©poca, houve eras douradas da matemĂĄtica, da astronomia e da medicina, com muitos avanços. Um exemplo: um mĂ©dico chamado Ibm al-Nafis, que viveu no sĂ©culo XIII no Cairo, foi a primeira pessoa a descrever a circulação pulmonar do sangue â quatro sĂ©culos antes que os europeus descobrissem isso.
A principal conquista foi quando, em grande escala, os muçulmanos começaram a se envolver criativamente com a ciĂȘncia e a filosofia da tradição clĂĄssica greco-romana-bizantina â e começaram a repensar essas idĂ©ias. Para praticamente todo o aparato da ciĂȘncia, matemĂĄtica e lĂłgica, estudiosos muçulmanos, junto com outros baseados no mundo muçulmano, forneceram correçÔes Ă tradição greco-romana.
Retrato de Saladino, o primeiro sultĂŁo do Egito e da SĂria e fundador da dinastia aiĂșbida. Enquanto Saladino liderava a oposição muçulmana aos cruzados ocidentais, ele tambĂ©m fez amizade com alguns, como o rei BalduĂno III de JerusalĂ©m.
Como vocĂȘ compararia as civilizaçÔes europeia e islĂąmica durante esse periodo?
PC: O mundo islĂąmico era muito maior e mais urbanizado, com mais riqueza e patrocĂnio cultural e mais diversidade Ă©tnica e linguĂstica. Enquanto as cidades da cristandade ocidental tinham populaçÔes medidas na casa dos milhares â Paris e Londres teriam talvez 20.000 cada â BagdĂĄ provavelmente tinha centenas de milhares de cidadĂŁos.
EntĂŁo, estamos falando sobre uma invasĂŁo de povos de uma regiĂŁo marginal e subdesenvolvida do mundo para uma das zonas mais urbanizadas e culturalmente sofisticadas do planeta. Isso explica a sensação de trauma do lado muçulmano. Como pessoas do limite do mundo conhecido poderiam invadir esta regiĂŁo divinamente protegida, culturalmente sofisticada e militarmente triunfante? Houve muito exame de consciĂȘncia por parte dos muçulmanos.
Se o mandato dos cruzados era reivindicar a Terra Santa e recuperar o controle de importantes locais cristãos como Jerusalém, qual era a importùncia desse território para o mundo islùmico?
PC: JerusalĂ©m, uma das cidades mais sagradas do IslĂŁ depois de Meca e Medina, era um de seus locais de peregrinação mais piedosos. A tradição islĂąmica se baseia em muitas tradiçÔes cristĂŁs e reverencia muitas das mesmas figuras conhecidas na BĂblia e em outros lugares â incluindo Jesus. Portanto, para eles, JerusalĂ©m era o centro de uma vasta paisagem sagrada que se estendia atĂ© a Palestina e a SĂria.
SM: HĂĄ muita literatura que ordena aos muçulmanos que protejam a Terra Santa e a salvaguardem como um espaço islĂąmico. Mas muitos lugares â em JerusalĂ©m, em Acre, Saidnaya e outras localidades â eram reivindicados por mais de uma comunidade. Esses eram locais sagrados para todos, nĂŁo apenas para um grupo.
Espera. EntĂŁo eles estavam realmente compartilhando locais sagrados pelos quais, em teoria, deveriam estar lutando?
SM: Hoje temos um entendimento rĂgido de que locais sagrados sĂŁo para um grupo, e os outros nĂŁo â e nĂŁo deveriam â chegar perto dele. Naquela Ă©poca, havia uma abordagem mais coletiva da santidade do espaço. A teoria islĂąmica dizia: âdevemos lutar contra essas pessoas e proteger a Terra Santaâ. Mas, na prĂĄtica, eles estavam dispostos a compartilhar. Sabemos com certeza que, quando os cruzados chegaram, a maioria dos muçulmanos nĂŁo levantou um dedo. E, em grande medida, os cruzados nĂŁo interferiram no espaço religioso muçulmano.
Assim que os cruzados se infiltraram, eles foram aceitos no cenĂĄrio polĂtico como quaisquer outros que surgiram: com alianças, guerras, tratados, comĂ©rcio. Temos cartas de Saladino ao rei de JerusalĂ©m, BalduĂno III, que transmitem amizade e alianças profundas. A relação nĂŁo era dogmĂĄtica, era pragmĂĄtica.
Balian de Ibelin entrega a chave de Jerusalem à Saladino numa ilustração francesa do século XV.
O que os muçulmanos medievais pensavam dos europeus?
SM: A ampla percepção muçulmana dos europeus era como bĂĄrbaros vesgos. Havia clichĂȘs que se repetiram atĂ© o sĂ©culo XIX â geralmente sobre a falta de limpeza, o fato de defecar na rua sem qualquer sensação de privacidade. HĂĄ uma histĂłria sobre a medicina cruzada, que eles sangravam para que os demĂŽnios saĂssem. As pessoas que conheceram os cruzados deram uma compreensĂŁo muito mais apurada, mas as narrativas positivas nĂŁo foram amplamente divulgadas.
PC: Os viajantes muçulmanos tinham uma visĂŁo de mundo hierĂĄrquica. No centro estava o mundo islĂąmico. Em suas margens, o povo da Europa Ocidental nĂŁo estava no limite, mas aquecendo as mĂŁos no fogo da civilização. A Europa era considerada fria e escura e rodeada de nĂ©voa. Na antiga etnografia medieval, a geografia era o destino. Acreditava-se que os francos eram peludos, pĂĄlidos e vindos do Norte escuro e sujo. A visĂŁo do mundo islĂąmico medieval sobre o Ocidente Ă© um espelho da visĂŁo atual do IslĂŁ pelo Ocidente: exĂłtico e distante, povoado por uma população fanĂĄtica guerreira, lento para se desenvolver, economicamente atrasado â com belos monumentos e matĂ©rias-primas, mas de outra forma nĂŁo muito recomendado.
O que dizem as crĂŽnicas especificas?
PC: O mais famoso cronista foi um autor ĂĄrabe chamado Ibrahim Ibn Yaqub, que viajou pela Europa no sĂ©culo X, e seu trabalho foi citado por outros. Ele deixou relatos de primeira mĂŁo da França, ItĂĄlia e Alemanha, entre outros lugares. Aprendemos, por exemplo, sobre a exuberĂąncia da terra em BordĂ©us, as prĂĄticas de festas na Alemanha e atĂ© as prĂĄticas de caça Ă s baleias perto da Irlanda. Por tudo isso, ele ficou satisfeito com a terra, mas horrorizado com as pessoas que encontrou. âEles nĂŁo tomam banho exceto uma ou duas vezes por ano, com ĂĄgua friaâ, escreveu ele. âEles nunca lavam suas roupas, que vestem uma vez para sempre atĂ© que caiam em farrapos.â O que vocĂȘ tem Ă© uma estratĂ©gia clĂĄssica pela qual uma sociedade transforma em âoutrosâ outra sociedade â da mesma forma que os europeus fizeram com os muçulmanos.
SM: Aqueles que viveram com os cruzados de perto Ă s vezes deram uma imagem mais sutil. Um diplomata chamado Usama ibn Munqidh foi aos territĂłrios dos cruzados e fez amizade com os lĂderes. Ele escreve sobre visitar um tribunal e ficar muito impressionado com isso. Ele gostava do fato de que o local nĂŁo era totalmente autocrĂĄtico.
O que os muçulmanos pensavam dos cavaleiros templårios?
PC: Eles estavam cientes do status especial dos TemplĂĄrios como guerreiros sagrados de elite e os consideravam seus oponentes francos mais temĂveis. Eles tambĂ©m os viam como tendo princĂpios, fanaticamente leais e inabalavelmente ferozes. Ă um elogio indireto que apĂłs a batalha de Hattin em 1187 â a grande derrota dos francos nas mĂŁos de Saladino, que geralmente era magnĂąnimo â ele insistiu que os prisioneiros templĂĄrios fossem executados porque eram vistos como uma ameaça terrĂvel.
Por outro lado, Usama Ibn Munqidh conta a histĂłria de um franco, recĂ©m-chegado Ă Terra Santa, que o importunou sobre como ele orava quando estava em uma capela templĂĄria. E os TemplĂĄrios pediram desculpas e ajudaram Usama. RecebĂȘ-lo para orar fazia parte de um cĂłdigo diplomĂĄtico.
SM: Os Templårios representaram para os muçulmanos um modelo que mesclava religiosidade e militùncia que era uma novidade. Para dar um paralelo moderno, eles foram percebidos não muito diferentes da maneira como os muçulmanos hoje pensam sobre o ISIS: que eles são fanåticos demais para o seu gosto. Trazem para a luta uma espécie de zelo religioso e trazem para a religião uma espécie de militùncia.
JerusalĂ©m era um dos lugares mais sagrados do MediterrĂąneo oriental â para muçulmanos, cristĂŁos e judeus.
A jihad e a cruzada estĂŁo relacionadas?
PC: Existe uma semelhança de famĂlia porque eles compartilham raĂzes no monoteĂsmo, onde Deus Ă© um deus zeloso. E tanto as Cruzadas quanto a Jihad ofereceram o martĂrio para aqueles que morriam. Mas embora sejam parecidos, elas tĂȘm algumas diferenças importantes. As cruzadas visavam a libertação de terras sagradas consideradas legitimamente cristĂŁs, enquanto a Jihad tratava de resgatar almas.
SM: Eu pessoalmente não encontro nenhuma diferença estrutural entre os dois. Jihad tem um conceito islùmico: agressão sancionada religiosamente. As Cruzadas foram exatamente isso.
Qual foi o impacto das Cruzadas no mundo muçulmano?
SM: O legado das Cruzadas no mundo muçulmano Ă© que muitos muçulmanos pensam onde estĂŁo hoje em termos da invasĂŁo ocidental. Para alguns, as Cruzadas sĂŁo vistas nĂŁo apenas como uma ameaça medieval, mas como uma ameaça atual â uma tentativa perpĂ©tua do Ocidente de minar o IslĂŁ. Pode ser colonialismo fĂsico ou colonialismo cultural.
Os grupos que pagaram o maior preço pela experiĂȘncia dos cruzados foram os cristĂŁos locais (nĂŁo europeus). Quando os cruzados foram expulsos, as dinastias dominantes eram sunitas. Muitos xiitas e cristĂŁos locais achavam que sua melhor opção era se converter. ApĂłs o perĂodo das cruzadas, o Oriente MĂ©dio se torna muito menos cristĂŁo e muito menos xiita.
Por que as Cruzadas ainda são relevantes hoje no Oriente Médio?
PC: Ă um pouco como o que Mark Twain disse: âA histĂłria nĂŁo se repete, mas Ă s vezes rimaâ. Os ideĂłlogos modernos podem recorrer Ă s Cruzadas para justificar o conflito contemporĂąneo como parte de um continuum de um milĂȘnio. Mas a verdade Ă© que os cruzados e muçulmanos lutaram por seus prĂłprios objetivos, nĂŁo por aqueles que nos motivam hoje.
Fonte: history.com
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Boa histĂłria.
Luz pâra nĂłs!
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Ficou bem massa o pots, Obrigado
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Paradoxo que gera o movimento
Nada Ă© em vĂŁo!!!