STF retoma julgamento que pode abrir um novo capítulo na política de drogas do Brasil e distinguir objetivamente usuários de traficantes
A retomada no dia, 21, do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, que pode alterar a punição ao porte de drogas para uso pessoal deve abrir um novo capítulo no tratamento do tema no Brasil. O país tem adiado em demasia o debate sobre quais critérios objetivos podem ser usados para distinguir usuários de traficantes. Essa distinção tem efeito direto tanto para a saúde pública quanto para a redução da violência. Quem achar que é coisa da “turma de direitos humanos” ou de apologistas das drogas está ultrapassado, ou se deixa dominar pelo conservadorismo moral, ou precisa se informar melhor. Ou as três coisas.
Diversos países nas Américas – como EUA, Uruguai, Colômbia, México e Canadá – estão fazendo mudanças em suas políticas de drogas, adotando regras para usos medicinais, descriminalização e até legalização do chamado uso recreativo (ou uso social) de substâncias que até então eram ilegais. O instituto Igarapé tem uma importante plataforma, o Monitor de Política de drogas nas Américas, que mostra as principais reformas mundo afora nas políticas de drogas, com os diferentes caminhos que migram de uma política de tolerância zero pra um enfoque na saúde pública. É o que o igarapé chama de “soluções mais humanas e eficientes”.
Há outros argumentos em favor da descriminalização. A principal delas é que, na prática, a lei aumentou a proporção de pessoas presas por tráfico de drogas. Em 2005, segundo dados oficiais, 14% dos presos brasileiros eram acusados ou condenados por tráfico. Em junho do ano passado, esse percentual havia pulado para quase 30%.
Não sem reforço a estigmas sociais e raciais. Pessoas negras foram consideradas traficantes mesmo flagradas com quantidades significativamente menores do que aquelas que classificaram pessoas brancas como usuárias. Cinco anos atrás, o Instituto Sou da Paz mostrou, por exemplo, que no estado de São Paulo metade dos casos de tráfico de maconha envolvia pessoas portando, no máximo, 40 gramas de erva. O equivalente a dois bombons. Repita-se: dois bombons.
Mudar a lei significa reduzir a pressão sobre o sistema carcerário. (O Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta, atrás apenas de EUA e China.) E essas pressão tem alvo e cor certos. Como afirmou há poucos dias à repórter Fernanda Mena o ex-secretário Nacional de Justiça Pedro Abramovay – diretor para a América Latina da Open Society Foundation – ” a não existência de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes é um dos grandes motivos de termos um Judiciário e uma polícia que prendem pessoas em função de sua cor de pele e de seu endereço ser ou não na favela”.
Essa injustiça social esteve no epicentro das reivindicações do grupo que à Avenida Paulista, em São Paulo, no penúltimo sábado 17, na Marcha da Maconha. Com o mote “Antiproibicionismo por uma questão de classe – Reparação por necessidade”, o manifesto da marcha este ano expôs a urgência do fim da guerra às drogas. E convidou as pessoas a um ato de desobediência civil pacífica, oferecendo 50 mil sementes da planta de cannabis.
“A semente é o início de tudo. Ela pode ser a chave pra começarmos hoje a socialização e reparação histórica necessárias que tanto queremos para corrigir as injustiças raciais e econômicas geradas pelo proibicionismo”
diz o manifesto lançado no sábado.
Presente à Marcha, o advogado João Gabriel de Carvalho reforça a ideia de que se trata de um movimento mais amplo.
“Não são apenas pessoas pregando o direito ao uso adulto e social, com a liberdade para portarem a maconha e outras drogas. É um movimento que envolve associações que trabalham para o uso medicinal e científico da cannabis. São pessoas e organizações dispostas a discutir seu uso, em benefício de pacientes que precisam do óleo caseiro produzido com a Cannabis sativa para tratar de doenças como epilepsia, Alzheimer, mal de Pakinson, entre outras.”
Essa é uma frente que tem avançado, inclusive em setores conservadores. O erro, diz ele, será tentar separar os debates: permitir o avanço na agenda do uso medicinal da cannabis e frear o avanço no uso social.
“O movimento global antiproibicionista abrange tudo, porque se separarmos estaremos preservando especialmente a discriminação de pessoas negras nas periferias”
afirma Carvalho.
Para quem acha que a sociedade brasileira não está preparada para tanto, vale lembrar uma fala do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida:
“Não, a sociedade brasileira não está preparada para isso”
ele reconhece, para emendar em seguida:
“Mas é tarefa do Estado brasileiro preparar a sociedade para isso”. Não é achismo nem opinião, diz Almeida. É ciência.
Escola de Lúcifer
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